PUB

Fact-Checks

Portugal é o 2.º país da OCDE com maior consumo de antidepressivos?

A propósito do Dia Mundial da Saúde Mental, assinalado a 10 de outubro, o "Instituto + Liberdade" divulgou um gráfico em que Portugal aparece na segunda posição da lista de países da OCDE com maior consumo de antidepressivos. Os dados são atuais e estão corretos? E, se sim, o que causa tamanha escala de consumo?

14 Out 2022 - 03:04

Portugal é o 2.º país da OCDE com maior consumo de antidepressivos?

A propósito do Dia Mundial da Saúde Mental, assinalado a 10 de outubro, o "Instituto + Liberdade" divulgou um gráfico em que Portugal aparece na segunda posição da lista de países da OCDE com maior consumo de antidepressivos. Os dados são atuais e estão corretos? E, se sim, o que causa tamanha escala de consumo?

“Portugal é o segundo país da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico] com maior consumo de antidepressivos.” Esta é a conclusão apresentada num post do “Instituto + Liberdade” publicado a 10 de outubro deste ano, Dia Mundial da Saúde Mental.

Segundo os autores da publicação, os números revelam que “Portugal apresenta um consumo de 14 doses diárias por cada 100 habitantes”, sendo que “a dose diária representa a média indicada por dia para um medicamento usado por adultos para a sua principal indicação terapêutica”.

antidepressivos

No mesmo texto alerta-se para o facto de Portugal ser também “um dos países da OCDE onde o consumo de antidepressivos mais cresceu desde 2015, apenas superado pelo Chile, Letónia e Estónia”, com “um crescimento de cerca de 47%”.

Assim sendo, sublinha-se, “estes números estão em linha com os dados de 2019, apresentados pelo Eurostat, relativamente à percentagem da população a sofrer de depressão crónica”, sendo que, alegadamente, “também nesse indicador Portugal é segundo, atrás da Islândia, com mais de 12% da população a sofrer de depressão crónica”. Ou seja, de acordo com o post, há “cerca de 1 milhão e 250 mil portugueses a viver com esta condição.”

É verdade que Portugal é o segundo país da OCDE com maior consumo de antidepressivos?

Sim. Os dados revelados no post foram verificados pelo Viral e correspondem, de facto, às estatísticas da OCDE. Mas o que causa então tamanha escala de consumo de antidepressivos em Portugal? É um bom ou mau indicador de saúde pública? O Viral falou com dois especialistas, em busca de respostas.

Falta de recursos humanos na saúde mental

O psiquiatra Gustavo França começa por explicar que, de facto, nas décadas seguintes à viragem do século, “as prescrições de antidepressivos aumentaram em todo o mundo ocidental, sendo que outros antidepressivos que não o Prozac [o mais utilizado até então] foram entretanto desenvolvidos”.

PUB

No entanto, acrescenta, “na maioria das situações, as abordagens farmacológicas e psicoterapêuticas são complementares“. Por isso, “convém frisar que a utilização de antidepressivos em psiquiatria é muito ampla, sendo tratamentos comprovadamente eficazes nas perturbações de ansiedade, perturbações depressivas, perturbações obsessivo-compulsivas, entre outros”.

Isto porque, sublinha França, estes fármacos “são eficazes quer no alívio da sintomatologia, quer na recuperação da funcionalidade da pessoa“.

Assim, perante os dados sobre o elevado consumo de antidepressivos em Portugal em comparação com outros países europeus, o médico indica que “os estudos epidemiológicos de saúde mental em Portugal têm revelado que somos um dos países europeus com maior prevalência de perturbações mentais, incluindo as perturbações de ansiedade e perturbações depressivas (sendo que os fatores de natureza social, como a pobreza e outras situações sociais desfavoráveis podem contribuir para este diferencial).”

Além disso, sustenta, “em algumas regiões de Portugal, existe um acesso insuficiente a cuidados de saúde mental, seja ao nível dos cuidados de saúde primários, seja ao nível dos cuidados de saúde especializados (psiquiatria), o que pode protelar a intervenção”. Desse modo, a intervenção pode “vir a ser realizada numa altura em que o quadro apresenta maior gravidade clínica”.

Em comparação com outros países europeus, prossegue França, “temos rácios muito inferiores do que aquilo que seria desejável em termos de recursos humanos – psicólogos, terapeutas ocupacionais e enfermeiros de saúde mental – na saúde mental”. Por esse motivo, “as intervenções psicológicas e psicossociais constituem uma primeira linha de intervenção nos quadros depressivos e ansiosos ligeiros. E uma abordagem complementar (e não alternativa) nos quadros de perturbações depressivas e ansiosas graves”.

Na visão do especialista, a eventual excessiva prescrição “de antidepressivos poderá ser um reflexo direto da insuficiência (ou até, em alguns casos, de ausência) de respostas em termos de psicologia, psicoterapia e terapias sócio-ocupacionais”.

Ora, “sem esses recursos, a resposta médica, seja nos cuidados de saúde primários, seja nos cuidados de saúde especializados, continua a ser relevante e justificável, mas fica extremamente empobrecida”, conclui.

PUB

Entre as listas de espera e o “mal menor”

No mesmo plano, o bastonário dos Psicólogos, Francisco Miranda Rodrigues, considera que, “como em todos os problemas complexos, também aqui as respostas não são lineares”.

Por um lado, os dados podem revelar que “mais pessoas passaram a ter acesso e a consumir um psicofármaco do qual necessitavam porque, num determinado momento, com maior consciência da necessidade de apoio, recorreram a um profissional de saúde”, o que seria “positivo”.

Contudo, adverte Miranda Rodrigues, esta hipótese não deve servir para “descontextualizar os restantes dados” a ser “considerados quando o consumo de psicofármacos existe”, nomeadamente o facto de “o acesso aos profissionais da área da saúde mental, sejam eles psicólogos ou psiquiatras, continuar a ser muitíssimo difícil, pelo menos para 50% da população, que é quem não tem dinheiro para ir ao privado”.

Além disso, defende, “muitas vezes, a medicação está a ser receitada porque não existe possibilidade de aceder a outro tipo de intervenções”. E, por vezes, acrescenta, “os médicos de família veem-se num dilema perante alguém que precisa de apoio, que está em sofrimento psicológico e que não tem possibilidade de aceder a uma intervenção por parte do psicólogo.”

Para o bastonário, “muitas vezes, não seria recomendado receitar o psicofármaco”, mas este gesto acaba por ser “o mal menor, porque não há intervenção psicológica disponível”. Nesse sentido, aponta, uma “orientação de boa prática” seria o médico de família referenciar um psicólogo na sequência do tratamento, mas essa decisão poderia significar também uma intervenção mais demorada para o paciente.

PUB

“Acontece que, também em muitíssimas das vezes, não há capacidade de resposta do psicólogo. Às vezes, a lista de espera é tão grande que o próprio médico de família tem de se questionar se encaminha o paciente para o psicólogo ou se o medica, sabendo que, provavelmente, a pessoa não vai ficar melhor, mas reduz-se a sintomatologia”, explica.

Por fim, Miranda Rodrigues considera ainda que, em várias situações, há casos de inexistência de doença mas presença de sofrimento. Isto é, em que há necessidade de apoio, mas não obrigatoriamente apoio farmacológico. “Nesses casos, provavelmente, não seria necessária a receita, mas sim uma intervenção. Estas pessoas não estão necessariamente doentes”, conclui.

Categorias:

Saúde mental

14 Out 2022 - 03:04

Partilhar:

PUB