Homeopatia cura a depressão?
Argumenta-se nas redes sociais que o recurso a práticas e a medicação homeopáticas pode curar a depressão. É verdade que a homeopatia cura a depressão?
A homeopatia, uma terapia alternativa criada pelo alemão Samuel Hahnemann no século XVIII, tem vindo a ganhar cada vez mais seguidores em todo o mundo. O novo monarca do Reino Unido, Carlos III, é, aliás, um assumido defensor desta prática, sendo patrono da Faculdade de Homeopatia do Reino Unido desde 2019. O sucessor de Isabel II defende também a expansão da homeopatia no serviço nacional de saúde britânico que, em 2017, deixou de recomendar esta terapêutica por falta de provas da sua eficácia em tratamentos de problemas de saúde.
Na rede social Facebook, advoga-se que esta prática – cujos princípios propõem que se diluam sucessivamente determinadas substâncias, a maior parte de origem natural, em água, até que esta retenha as suas propriedades moleculares que levam à cura – pode ser usada no tratamento da depressão.
Numa publicação datada de agosto deste ano, argumenta-se que a homeopatia “trabalha o equilíbrio da energia vital, regula e harmoniza o eixo neuro-psico-imuno-endócrino, alinhando hormonas, neurotransmissores e sistema imunológico”. Como tal, é ainda referido que os medicamentos homeopáticos “são capazes de estimular defesas próprias do organismo em direção a esse conceito de cura, seja em condições físicas, mentais ou emocionais”. Mas será verdade?
Confirma-se que a homeopatia cura a depressão?
A falta de plausibilidade biológica da homeopatia é um dos primeiros argumentos evocados pelo psiquiatra Gustavo Jesus para explicar que não existe relação possível entre esta terapêutica alternativa e a cura de uma doença em que perto de 60% dos doentes não procuram cuidados médicos.
“Não há nenhuma prova científica de que diluir, sucessivamente, determinadas substâncias em água cause marcas moleculares nessa água e que essa água, com supostas marcas moleculares ou energias, tenha qualquer efeito direto sobre a biologia do nosso corpo – neste caso sobre o nosso cérebro”,começa por explicar o diretor clínico do PIN – Partners in Neuroscience Lisboa.
Porquê? “Porque para supormos que determinado produto que ingerimos vai ter um efeito terapêutico na depressão, estamos a dizer que, no fundo, vai atuar no cérebro, porque é esse o órgão onde está a depressão”, sustenta o especialista.
E a psicoterapia?
Sendo uma doença “que resulta de inúmeros fatores”, a depressão traduz-se numa “desregulação do órgão cérebro”, elucida o psiquiatra. Um tratamento, para ser eficaz, “tem de ter um efeito biológico no cérebro”, continua. Mas será que se pode dizer que, por exemplo, a psicoterapia surte efeito no tratamento da depressão, uma vez que é uma prática que, à semelhança da homeopatia, não atua biologicamente no cérebro?
Pode dizer-se que sim. “O que a psicoterapia faz é mudar o cérebro pelo treino comportamental”, afirma Gustavo Jesus.
Mas como? “Se estiver a treinar um indivíduo para ter uma determinada resposta a uma situação de stress e o psicoterapeuta ensinar essa pessoa a desenvolver uma estratégia comportamental para aquele acontecimento, esse treino tem impacto no cérebro, no sentido em que os circuitos neuronais vão ser repetidamente utilizados e ficar marcados para aquele comportamento”, adianta Gustavo Jesus.
Já os medicamentos convencionais usados no tratamento da depressão “atuam [no ser humano] por uma lógica biológica”. Isto é, “ingere-se um medicamento que é ativo biologicamente, atuando em determinados recetores do nosso cérebro e que, por essa via, modifica o sistema cerebral”.
Gustavo Jesus é claro ao afirmar que “a homeopatia, de uma forma ou de outra, não tem qualquer efeito biológico no nosso cérebro”. O único efeito que a homeopatia poderá ter no ser humano, equaciona, “é o efeito placebo”.
Para tornar mais inteligível aos leitores o seu raciocínio, o diretor clínico do PIN Lisboa dá o exemplo de alguém que acredita que “comer bolachas cura a depressão”. “Se eu estiver muito convencido que comer bolachas vai curar a minha depressão, dá-se um efeito placebo que está estudado na ciência. A minha expectativa relativamente a um acontecimento tem efeitos biológicos”, aponta.
Essa expectativa desencadeia, por sua vez, uma “libertação de endorfinas e de outras substâncias que resultam numa alteração do estado mental, mas que será transitória, de curta duração e de baixa intensidade”, ressalta.
Ainda assim, é importante estar consciente de que o efeito placebo também ocorre com medicamentos. “Ao tomar-se um antidepressivo, uma melhoria pode acontecer em parte devido ao efeito placebo”, clarifica Gustavo Jesus. A diferença, sublinha, é que “o medicamento tem um efeito biologicamente ativo que corresponde ao seu efeito terapêutico, tornando o tratamento eficaz”, ao contrário do que acontece com práticas homeopáticas.
O que diz a evidência científica?
Numa breve pesquisa no motor de busca PubMed, que reúne milhares de artigos de investigação de biomedicina, um estudo de 2015 intitulado Controlled clinical studies of homeopathy argumenta que, depois das observações de ensaios clínicos veiculadas no livro Ultra High Dilution (1994), de Max Haidvogl, “a literatura sobre homeopatia cresceu em 309 registos” nos 18 anos que se seguiram à sua publicação.
“Três revisões sistemáticas abrangentes concluíram, cautelosamente, que a homeopatia pode diferir do placebo; uma quarta revisão chegou a conclusões negativas. Uma meta-análise recente de alta qualidade concluiu que os medicamentos prescritos no tratamento homeopático individualizado podem ter efeitos reduzidos e específicos”, lê-se ainda.
Gustavo Jesus chama a atenção para a importância de saber interpretar estes artigos científicos, sublinhando que estudos que sustentam a eficácia da homeopatia através de um caso clínico “não têm relevo científico nenhum”. “O que é de interesse são os estudos controlados em que a homeopatia é comparada com algo. Com o efeito placebo”, exemplifica.
Nas conclusões do artigo acima referido, em linha com as afirmações de Gustavo Jesus, é assinalado que, “apesar do grande crescimento na atividade de investigação desde 1994, existem preocupações sobre a qualidade dos estudos e as interpretações dos mesmos”.
“A dúvida sobre se a homeopatia difere do placebo continua sem resposta”, conclui o artigo.
O que leva à crença na homeopatia?
Para o médico psiquiatra a questão tem uma resposta relativamente simples: “as pessoas têm preconceitos relativamente aos medicamentos”. Gustavo Jesus defende que, ao ser vendida uma solução para uma “doença que supostamente é eficaz e que não tem medicamentos – pois falamos de copos de água com energia molecular –, quem é preconceituoso em relação a tratamentos psiquiátricos rapidamente adere a uma prática que não tem nenhuma evidência científica, mas que confere uma falsa sensação de segurança”.
O psiquiatra lembra ainda que, no caso da depressão, “não tratar um doente pode fazer com que o seu quadro se agrave, dando origem a ideação suicida ou mesmo suicídio”.
Na opinião de Gustavo Jesus, a depressão ainda é vista como uma condição de “pouca importância” e optar-se por beber águas homeopáticas na perspetiva de que “mal não faz” é uma ideia totalmente errada.
“Mal faz, pois, se a depressão piorar, estamos a não tratar a doença quando podíamos atuar sobre ela”, conclui.
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