Células do bebé ficam no corpo da mãe “para sempre” mesmo após um aborto?
Alega-se no Facebook que, “mesmo que o bebé tenha morrido durante a gravidez”, as suas células ficam no organismo materno “para sempre”.
Segundo a informação divulgada no vídeo, o “termo científico” para este fenómeno é “microquimerismo fetal”.
O autor da publicação sugere ainda que este fenómeno ocorre “a partir da terceira semana de gestação”, altura em que “as células do bebé ligam-se ao corpo da mãe”. Estas alegações estão comprovadas do ponto de vista científico?
É verdade que as células do bebé ficam no organismo materno “para sempre” mesmo após um aborto?
Em declarações ao Viral, Alexandra Matias, assistente graduada no departamento de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital de São João e professora catedrática na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP), adianta que, de facto, “há várias provas que indicam que há células do feto que passam para a mãe durante a gravidez” (ver aqui, aqui, aqui e aqui).
Aliás, sabe-se que “existe um tráfego bidirecional de células durante a gestação humana normal”, ou seja, “há células fetais que ficam na mãe” (microquimerismo fetal), tal como “também há células maternas que entram no feto” (microquimerismo materno), acrescenta a médica.
Ainda assim, o prefixo “micro” indica que “a quantidade de células que passa é pequena”, justifica a médica consultada pelo Viral.
Quando o bebé nasce, “as células que ficam com a mãe são poucas”, refere a professora da FMUP.
Mas, “quando vem um segundo bebé, se o pai for o mesmo, estas novas células sobrepõem-se às outras, em maior quantidade” (apesar de as células do primeiro bebé ainda estarem presentes).
Por outro lado, “se o pai não for o mesmo, tudo se passa como se fosse uma primeira gravidez”, conclui.
Apesar de o microquimerismo fetal ser um conceito conhecido e estudado, a publicação em análise contém algumas imprecisões. Explicamos porquê em 3 pontos:
1 – As células fetais só se misturam com as maternas numa fase mais avançada da gestação
Ao contrário do que é dito na publicação partilhada, a evidência científica mostra que a transferência de células fetais para a mulher começa entre a quarta e a sexta semana de gestação e continua durante toda a gravidez (ver aqui e aqui).
Por isso, em caso de aborto, a mulher só poderá ficar com células fetais no organismo se a perda gestacional ocorrer depois desse período. Isto porque, numa fase muito inicial, frisa Alexandra Matias, “ainda não há uma quantidade de células suficientes”, sendo “preciso algum tempo, durante a gravidez, para elas irem passando e para haver circulação suficiente entre os dois seres”.
2 – Não se sabe se todas as mulheres experienciam o microquimerismo fetal
Há, de facto, registo da presença de células fetais em organismos maternos, mesmo após o parto. Aliás, a investigação sugere que o microquimerismo fetal em humanos é comum e parece ser tão frequente como nos animais (ver aqui).
Contudo, não se sabe ao certo se todas as mulheres retém células fetais. Aliás, segundo um trabalho de 2020, crê-se que “a persistência e a abundância do microquimerismo fetal dependem de numerosos fatores, incluindo as relações imunogenéticas entre a mãe e o feto e, talvez, entre os habitantes pré-existentes do sistema materno, da sua mãe ou de filhos anteriores”.
3 – Não há evidência que comprove que as células ficam na mulher “para sempre”
Segundo Alexandra Matias, sabe-se que as “células fetais persistem no sangue periférico materno por muitos anos após a gestação”. Aliás, isso foi “demonstrado em autópsias de mulheres em menopausa”, acrescenta.
No mesmo sentido, a investigação de 2020 (referida anteriormente), reporta que alguns “estudos sobre mulheres que deram à luz crianças do sexo masculino apresentaram uma alta incidência de células masculinas no sangue após o parto”.
Inclusive, “algumas dessas mulheres exibiram células masculinas nos seus tecidos até 27 anos após o parto”, escreve-se. Sendo que esta “permanência foi relatada em 30 a 50% de mulheres que tiveram um filho do sexo masculino”.
Isto acontece, refere-se noutro estudo recente, porque “as células fetais atravessam a barreira placentária e entram na circulação materna, onde podem sobreviver, migrar e integrar-se em diferentes tecidos maternos”.
Nos seres humanos, o microquimerismo fetal foi encontrado “em vários órgãos, como pele, apêndice, fígado, cérebro, pulmão, coração, mama, glândulas suprarrenais, tiroide, gânglios linfáticos, glândulas salivares, útero, vesícula biliar e intestino”, acrescenta-se.
Contudo, não há dados que permitam garantir que as células fetais ficam no organismo materno “para sempre”, como é sugerido no post de Facebook em análise.
Qual a possível influência das células fetais no organismo materno?
Apesar de não ser muito robusta, a evidência atual sugere que o microquimerismo fetal pode ter possíveis efeitos positivos e negativos na saúde materna. Alexandra Matias fala em dois: a contribuição para o desencadeamento de doenças autoimunes nas mulheres e, por outro lado, o aumento da longevidade.
Existem estudos – como um trabalho de 2017, intitulado “Late pregnancy – a clue to prolonging life?” – que indicam que “a passagem de células muito jovens para um corpo mais velho rejuvenesce-o e aumenta a longevidade da mulher”, esclarece a médica.
Além disso, “parece que, quanto maior for a diferença de idade entre o feto e o organismo materno, maior será a capacidade de reparação dos tecidos e, consequentemente, maior será a longevidade materna” (ver aqui e aqui).
Noutro plano, tem sido estudada a possibilidade de o microquimerismo fetal contribuir para o surgimento de doenças autoimunes na mulher. Como?
Alexandra Matias explica que, durante a gravidez, o sistema imunitário materno desenvolve uma tolerância ao feto, que deixa de ter após o parto. Esta tolerância pode explicar o facto de alguns sintomas de doenças autoimunes diminuírem durante a gravidez, em algumas mulheres.
Nesse sentido, foi levantada a hipótese de que as células fetais na circulação materna poderiam ser importantes para influenciar a doença autoimune na gravidez e no pós-parto.
Por exemplo, salienta a especialista, “as tiroidites são das patologias mais frequentes na mulher, já alguns anos depois de terem filhos”. Por esse motivo, Alexandra Matias admite que, na sua prática clínica, faz questão de receitar “ecografias à tiroide” algum tempo depois de as suas pacientes serem mães.
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