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Entrevistas

António Pedro Mendes: “É muito mais fácil conquistar alguém com ideias mirabolantes”

29 Abr 2024 - 03:24

António Pedro Mendes: “É muito mais fácil conquistar alguém com ideias mirabolantes”

A informação sobre nutrição desportiva parece, hoje, estar à distância de uma pesquisa num motor de busca da internet. Mas no mesmo mundo online onde mora muita informação útil e fidedigna habita também um manancial de desinformação que pode ser perigosa para a saúde individual e pública. Foi a pensar nisso que António Pedro Mendes, nutricionista e coordenador do Departamento de Nutrição do Sporting Clube de Portugal, decidiu escrever o livro “Muito Mais do que Proteína”, um manual de nutrição desportiva baseado na melhor evidência científica, mas que pode ser lido e compreendido por qualquer pessoa, com ou sem formação na área.

Em entrevista ao Viral, o nutricionista explica o que o levou a escrever este livro, quais as modas mais perigosas e os suplementos alimentares mais sobrevalorizados no desporto e como evitar cair em desinformação sobre nutrição nas redes sociais.

Logo nas primeiras páginas de “Muito Mais do que Proteína” confessa que escrever um livro sobre nutrição desportiva é “um sonho bem antigo” que levou mais de uma década a concretizar, embora considere também que o fez no momento certo, pela “experiência e maturidade técnico-científica” que, entretanto, atingiu. Acredita que, além disso, este livro é hoje ainda mais necessário ou mais pertinente do que há 10 anos?

Sim, acredito que, a cada ano que passa, um livro sobre qualquer área da saúde que seja intelectualmente honesto é cada vez mais uma necessidade.

Diria que qualquer projeto que venha tentar, de alguma forma, combater a desinformação é cada vez mais premente.

Por outro lado, também acredito que essa maturidade que fui ganhando com o passar do tempo possa ter contribuído para desenvolver uma comunicação mais eficaz.

Nós, nutricionistas e profissionais de saúde no geral, temos alguma dificuldade em conquistar todo o nosso público-alvo, toda a comunidade. Ou seja, nós temos o conhecimento, mas temos muita dificuldade na hora de o transmitir e, acima de tudo, temos pouca capacidade de o tornar apelativo.

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E, muitas vezes, a informação falsa é mais apelativa do que a informação mais fidedigna. Acredito que nós ainda não descobrimos a fórmula para conseguir criar informação mais apelativa. Isto é transversal a várias áreas, até na política. Com o crescimento dos partidos de extrema-direita, os outros partidos não sabem muito bem como combatê-lo. Portanto, estamos ainda numa fase experimental de entender como é que se consegue informar melhor as pessoas de forma a combater o extremismo. E, na nutrição, eu faço esse paralelismo também. Estamos ainda a descobrir como lá chegar.

Foi também por isso que criou o podcast “Nutrição Retratada”?

António Pedro Mendes Muito mais do que proteína nutrição desportiva

Exatamente. Foi com o mesmo intuito, ainda que o podcast seja mais alargado. Ou seja, não é tão focado na nutrição apenas direcionada ao exercício físico, mas nutrição no global. O feedback também tem sido bastante positivo. Pelo que vou percebendo, é um podcast de nutrição, mas que acaba por estar constantemente no Top 100, Top 50 geral dos podcasts, o que não é algo frequente de se ver.

Por isso, pelos números e pelas estatísticas que vou tendo do podcast, acredito que a mensagem esteja a chegar. 

E isso deixa-me realmente feliz, porque eu tinha dúvidas sobre se um conteúdo tão científico e exposto de uma forma tão científica chegaria a muita gente, mas, efetivamente, já ultrapassa aqui os dois mil ouvintes semanais. E creio que, depois, isso pode também espalhar-se e também crescer mais, com o tempo, se a mensagem for transmitida com sucesso.

O que é transversal tanto ao livro quanto ao podcast é o uso de uma linguagem simples sem ser simplista, não é? 

Sim. Essa, pelo menos, é a minha tentativa e admito que de todo o processo de escrita e de edição do livro por parte do meu editor. 

Foi um trabalho duro, difícil no sentido em que o texto, o primeiro manuscrito, começou quase como um texto académico e, depois, o meu editor ia-me fazendo sugestões para simplificar o tema, mas sem ser simplista, porque essa é, efetivamente, a maior dificuldade.

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Aliás, no final do livro, eu estava com receio que o facto de ter simplificado alguns temas pudesse ter levado a um menor rigor científico, mas no fim fiquei satisfeito porque pareceu-me que está um bom meio-termo e um bom equilíbrio entre chegar a muita gente – porque qualquer pessoa que não tenha formação na área creio que vai entender mais de 90% do livro -, mas, por outro lado, esclarecendo aqui alguns mitos e algumas ideias muito enraizadas.

Noutro plano coordena o departamento do Sporting e já trabalhou noutros clubes como o Paços de Ferreira e o Futebol Clube do Porto. A forma como os atletas e a equipa técnica olham para a nutrição e a importância que lhe atribuem também mudou significativamente desde que começou a sua prática clínica?

Mudou muito, mudou muito. A valorização que os clubes, equipas técnicas, jogadores dão à nutrição tem vindo a crescer e, honestamente, não sei se esse crescimento já estabilizou ou se continuará nos próximos anos. 

Aliás, basta olharmos para os números dos nutricionistas em clubes de futebol e eu atrevo-me aqui a tirar alguns números que possam não ser tão precisos quanto isso, mas há 10 anos os três clubes maiores de futebol em Portugal teriam no seu conjunto quatro nutricionistas, eventualmente. Neste momento, são quase 30.

Portanto, estamos a falar de uma diferença absolutamente abismal. Um crescimento notável. Eu diria que a nutrição é a área dentro do futebol que mais cresceu nos últimos 10 anos e isso deixa-nos satisfeitos, ainda que achemos evidentemente que há aqui algum espaço para um crescimento maior da nutrição.

Acreditamos que ainda pode continuar esse sucesso. E muito depende também da sensibilidade de treinadores, de equipas técnicas no geral e de dirigentes dos clubes, que eu acredito que também estão cada vez mais sensíveis ao tema, talvez, porque nós tenhamos conseguido conquistá-los através de resultados e de forma de trabalhar.

Voltando ao livro, refere que o seu objetivo é traduzir ciência e conhecimento acessível a todos os amantes da prática de exercício físico. Ou seja, este não é um livro só para atletas. Em que medida é que a alimentação de um atleta é diferente de uma pessoa que faça exercício regularmente mas que não tenha o desporto como profissão?

À partida, estaremos logo a falar de volumes de treinos semanais, de cargas de treinos semanais muito distintas e, a partir daí, as necessidades, não só do ponto de vista energético, do ponto de vista calórico, como também de alguns nutrientes macro e micro – portanto, aqui estamos a falar tanto de proteínas, hidratos de carbono, gorduras, assim como de vitaminas, minerais e substâncias antioxidantes de uma forma geral – têm de ser ajustadas a determinados contextos.

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Por exemplo, em alguém que pratique exercício físico de forma recreativa duas a três vezes por semana, eu não estou muito preocupado com a sua recuperação em termos de combustível. Ou seja, a reposição dos hidratos de carbono no músculo não são para mim uma preocupação ou uma prioridade.

Já num atleta que treine diariamente, com uma grande carga de treino e que tenha a parte competitiva como objetivo, teremos aqui efetivamente uma necessidade de ajuste. 

Agora, se estamos a comparar um atleta recreativo que treina muito com um atleta que tem objetivos competitivos, mas que tem a mesma carga de treino ou tem um volume de treino semelhante, aí a grande diferença é que a competição tem que ser preparada, num dos casos, com o objetivo de obter o melhor resultado possível. E a parte competitiva, a preparação nutricional da parte competitiva, é um dos grandes ramos da nutrição e que tem que ser levada em consideração. 

E o que é que é transversal?

António Pedro Mendes Muito mais do que proteína nutrição desportiva

Uma coisa que é transversal a todos os praticantes de exercício, sejam ou não atletas, é a qualidade alimentar. Portanto, aquela ideia de que os atletas têm de comer alimentos muito específicos é uma ideia errada. Nós temos uma base alimentar que deve ser transversal a toda a população. Evidentemente, que depois haverá aqui alguns ajustes nas quantidades, nos timings de determinada ingestão e até na utilização de alimentos específicos.

Por exemplo, alimentos mais ricos em açúcar podem ser muito úteis em dia e véspera de competição em atletas a sério e, se calhar, não terão tanto interesse fisiológico num atleta recreativo ou num praticante recreativo de exercício.

Pegando nessa ideia, no livro refere também que as “estratégias exóticas” para atingir um determinado objetivo são, muitas vezes, mais sedutoras do que as estratégias validadas pela ciência. Porque é que é tão difícil explicar às pessoas que, na maior parte dos casos, o básico funciona?

Honestamente, eu acho que é porque o básico é muito difícil de manter a longo prazo. Ou seja, quando nós pensamos no básico, podemos pensar de uma forma resumida numa alta ingestão de hortícolas, numa alta ingestão de fruta, numa moderação dos produtos ultraprocessados e, consequentemente, numa moderação da ingestão de produtos com açúcar adicionado ou gorduras menos interessantes nutricionalmente. E verdade é que tornar isto hábitos diários e de forma continuada é extremamente difícil. É uma alteração de comportamentos muito difícil de levar a cabo. Aliás, a ciência assim o mostra, e a parte da psicologia também tem aqui um papel muito relevante. 

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E, quando nós temos alguém que nos promete um resultado extraordinário em termos de saúde e performance com um suplemento ou com determinado batido ou com determinado alimento específico, evidentemente, pensamos que está ali um caminho bastante mais fácil e menos trabalhoso.

Portanto, eu acho que é mesmo pela dificuldade de adesão aos comportamentos básicos que depois se procura o atalho para chegar a determinado objetivo. 

Referiu a questão dos suplementos. Existem alguns que podem ser interessantes nesta questão da prática desportiva. Mas existem também muitos, e fala disso num livro, que não têm eficácia demonstrada ou pelo menos que seja relevante depois em termos de resultados. Quais são, na sua visão, os suplementos mais sobrevalorizados neste âmbito?

Bom, por mais sobrevalorizados, vou também associar aqui os mais vendidos e que efetivamente não têm muitas provas dadas.

Eu diria que é o uso indiscriminado de multivitamínicos e, dentro disso, especificando aqui algumas vitaminas e minerais, a vitamina C e o magnésio são muito consumidos e, muitas vezes, sem qualquer motivo ou racional teórico para esse consumo.

Depois, associados aos praticantes de ginásio estão, muitas vezes, a glutamina e os BCAAs (os aminoácidos de cadeia ramificada). E eu diria que, eventualmente, esses são os suplementos com menos provas para aquilo que é a fama que acabam por ter e as vendas que acabam por concretizar.

E, no sentido contrário, quais são aqueles que, de facto, parecem ser mais vantajosos?

Do ponto de vista de performance, nós temos aqui a creatina e cafeína à cabeça, mas eu também estaria a ser desonesto se dissesse que eles não são valorizados o suficiente.

Ou seja, há 10 anos, muita gente ainda teria bastante receio da creatina e existiam alguns mitos mais enraizados. Mas, atualmente, o que sinto em consulta, é que a creatina já é, eventualmente, o suplemento mais utilizado em contexto desportivo e, portanto, já há aqui uma valorização efetiva do suplemento com mais provas dadas neste contexto. Talvez, em relação aos suplementos mais subvalorizados, a cafeína possa ser a resposta a essa questão. Porque muita gente toma café por uma questão de prazer e até pela prática social da toma de café, mas ainda não percebeu efetivamente que a cafeína pode aumentar muito a disponibilidade para o exercício e a própria performance em si. 

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No mesmo sentido, quais são as modas da nutrição desportiva sem validação científica que são mais comuns e, sobretudo, também as mais perigosas?

Eu diria que as dietas que restringem determinados grupos alimentares por completo são aquelas que podem trazer mais perigos.

E eu até nem estou tanto a focar nas dietas de base vegetal e de tudo o que as rodeia, mas sim das dietas que, nos últimos tempos, têm alguma fama, nomeadamente a dieta carnívora, que, efetivamente, está a ganhar alguma relevância.

Quando vamos fazer uma pesquisa no Google Trends, por exemplo, vemos que está a popularidade desta dieta está a crescer e, do ponto de vista científico, não tem mesmo qualquer justificação. Não há ponta por onde se lhe pegue, não há racional que possa ser validado pela ciência e, portanto, eu diria que essa é uma das práticas com que temos de ter mais cuidado.

Agora parece que saiu até recentemente uma notícia de um atleta, um futebolista do Atlético de Madrid, que diz que desde que começou a dieta paleolítica que se sente muito bem e que vai segui-la para a vida. 

Portanto, este tipo de dietas, que acabam por não ter sustentação e que põem de parte alimentos tão interessantes – como, por exemplo, as leguminosas no caso da dieta paleolítica e os cereais integrais -, são perigosas.

Além disso, a dieta paleolítica, por exemplo, é um padrão alimentar que restringe muito os hidratos de carbono de uma forma geral. Ora, se há coisa que não interessa a um futebolista é esta restrição de hidratos de carbono. 

Estas dietas são perigosas no sentido em que podem levar à pobreza nutricional da alimentação e a um combustível insuficiente para aquilo que é exigência desportiva.

Aquilo que me parece até mais problemático é esta dificuldade em entender que o sentir-se bem com alguma coisa não significa que essa coisa faça sentido e que esteja a resultar.

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Portanto, ainda não há aqui uma capacidade de os atletas perceberem, de uma vez por todas, o papel do efeito placebo e conseguirem entender que não é porque se sentem bem que aquilo está a funcionar.

E, quando nós tentamos mostrar ciência e tentamos mostrar que não há justificação para uma determinada prática, ainda assim sinto, muitas vezes, que há alguns entraves por parte dos atletas em relação ao que estamos a dizer.

Esta é uma das grandes dificuldades que vamos ter durante muito tempo: conseguir distinguir esta sensação de benefício daquilo que é o benefício real.

Até porque os nutricionistas desta área – e que partilham informação online fidedigna e baseada em evidência científica sobre nutrição desportiva – acabam por estar a “competir” com agentes que têm interesses comerciais nestas matérias…

Sem dúvida. Aliás, eu dizia no outro dia, a partir de uma publicação nas redes sociais, que a comunidade de nutricionistas que trabalha com base na ciência se apoia muito e apoia os projetos uns dos outros.

Por exemplo, agora, com o lançamento do livro, o número de partilhas de colegas foi extraordinário, não estava à espera de um impacto tão grande. Mas depois estive a refletir e acredito que seja muito por isto, é que todos nós, nutricionistas, sentimos que há um inimigo comum, que é esta desinformação. Portanto, apoiar todos os trabalhos e os projetos de colegas que tentam fazer o mesmo que nós acaba por ser algo completamente automático.

Agora, continuo a achar que nós, os que trabalhamos com base na ciência, temos tendência a ser menos apelativos do que quem está a tentar vender “banha de cobra” e a tentar vender desinformação, porque é muito mais fácil conquistar alguém com ideias mirabolantes do que com ideias que acabam por ser básicas.

Como é que pode, então, o público em geral detetar que aquela abordagem ou aquele profissional poderá estar a partilhar desinformação ou “banha da cobra” ou a prometer algo que depois não terá os resultados milagrosos anunciados?

Acima de tudo, eu diria que é aumentar aqui a parte da literacia em saúde e literacia alimentar, particularmente com profissionais que tenham “algum nome na praça”.

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Portanto, seguir nas redes sociais as pessoas certas acredito que seja um bom primeiro passo.

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Depois, é importante ser desconfiado de tudo o que lê ou que ouve. Eu costumo até dizer, em situação de consulta, que é mais fácil dar uma consulta a quem nunca leu sobre nutrição e nem está sequer muito interessado em aumentar o seu conhecimento do que àquelas pessoas que já leram tudo e que acham que sabem muita coisa sobre nutrição, porque, por vezes, quem lê muito vai tender a ler muito de informação pouco fidedigna.

Portanto, acaba por haver, depois, ali uma confusão de conhecimento que acaba por levar até a alguns fenómenos de perturbação do comportamento alimentar em pessoas que sejam mais suscetíveis a eles. Assim sendo, eu diria que o desconfiar constantemente de ideias que sejam mirabolantes e muito diferentes daquilo que sempre se ouviu deve ser um bom primeiro passo.

Além disso, é importante fazer o básico e recorrer a um bom profissional devidamente qualificado, se quiser ir mais longe com determinado objetivo, seja ele relacionado com a performance, com a perda de peso ou com a hipertrofia muscular.

Portanto, que procure um nutricionista mesmo. Ou seja, alguém inscrito na Ordem dos Nutricionistas, porque há muitas pessoas a fazer uma usurpação de funções que são dos nutricionistas. Isso seria um bom primeiro passo.

E, dentro da escolha dos nutricionistas, fazê-lo com base em alguém que tenha alguma experiência e habilitações académicas para aquilo que é um objetivo da pessoa em particular.

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