Andreia descobriu que tinha autismo aos 34 anos: “Primeiro vem o alívio, a seguir confrontamos o mundo”
Andreia Morgado tinha 32 anos quando procurou ajuda especializada para tratar aquilo que julgava ser ansiedade. Dois anos depois, em 2023, foi diagnosticada com uma perturbação do espectro do autismo de nível 1 de suporte, e, mais tarde, com uma perturbação de hiperatividade e défice de atenção (PHDA).
No Dia Mundial da Consciencialização sobre o Autismo, Andreia conta ao Viral como foi descobrir que tem autismo na idade adulta e como é que a sua vida mudou depois do diagnóstico.
O caminho que levou Andreia ao diagnóstico de autismo
“Cerca de dois anos antes de ter recebido o diagnóstico, decidi procurar apoio psicológico para o que eu pensava ser ansiedade”, começa por contar Andreia.
Foi então que a psicóloga que a acompanhava na altura, pelas dificuldades que ia partilhando, e num processo de investigação conjunto, indicou a possibilidade de Andreia ter autismo.
A hipótese levantada foi o suficiente para levar Andreia à procura de um centro de diagnóstico especializado, onde, pouco tempo depois, recebeu o diagnóstico de autismo.
Até lá nunca tinha pensado na possibilidade de ter autismo, porque, justifica, tal “como a maioria das pessoas, não estava minimamente informada” sobre a perturbação.
“Quando eu estava a crescer, nos anos 90, não havia a informação que há hoje e pensava-se em pessoas autistas de uma forma muito homogénea, muito estereotipada”, descreve.
Mas outros fatores contribuíram para o diagnóstico tardio, a começar pelo percurso escolar bem-sucedido. Como sempre teve “um bom desempenho académico e o que era considerado um bom comportamento em sala de aula, nunca houve qualquer sinalização, nem por parte de professores, nem da escola”.
“Pelo contrário, entrei no primeiro ano com 5 anos, a meio do ano letivo, em janeiro”, revela.
Além disso, acrescenta, “sabe-se que as pessoas autistas desenvolvem um mecanismo de defesa inconsciente chamado mascaramento”, o que torna “difícil identificar e diagnosticar” uma condição como o autismo.
O caso de Andreia não é único, nem incomum. E há vários fatores que podem levar a um diagnóstico tardio de autismo. Quem o diz é o psiquiatra – e membro da Associação Portuguesa para as Perturbações do Desenvolvimento e Autismo (APPDA) – Carlos Filipe.
O primeiro deles, aponta, “tem que ver com a própria desinformação em termos médicos”.
“A perturbação do espectro do autismo, muitas vezes, ao longo da história recente, foi confundida com outro tipo de situações, nomeadamente como sendo uma forma de esquizofrenia”, refere o médico.
Por exemplo, continua, “muitas vezes, o diagnóstico de autismo de nível 3 não era feito”, porque se assumia que as pessoas tinham “défices intelectuais”.
Depois, sobretudo nos casos de nível 1, “as pessoas eram encaradas como sendo um pouco desajeitadas, com particularidades um bocado bizarras no seu comportamento, e acabavam por ser mais ou menos tratadas como tendo deficiências intelectuais”.
Portanto, “não havia, de facto, um diagnóstico que fosse feito de uma forma competente”. Por esse motivo é que algumas pessoas “estão a ser diagnosticadas com uma idade mais avançada”.
Segundo o psiquiatra, “até aos anos 90, ou mesmo um pouco depois, o acesso ao diagnóstico era relativamente escasso”.
Hoje em dia, com “cada vez mais informação, mais acesso aos serviços médicos”, um “maior alerta da parte das famílias e um maior recurso aos serviços de pedopsiquiatria e neuropediatria”, a situação começa a mudar.
Como é diagnosticado o autismo
“O diagnóstico da perturbação do espetro do autismo é um diagnóstico clínico”, explica Carlos Filipe. Por outras palavras, frisa, “não há marcadores, nem de imagem, nem bioquímicos, que permitam fazer esse diagnóstico”.
Por isso, “o diagnóstico é feito de acordo com três grandes eixos: a história clínica, a observação e a aplicação de instrumentos”.
A exploração da história da pessoa “tem de ser feita com cuidado”, através de “entrevistas estruturadas”, nomeadamente aos pais.
Depois, recorre-se à “observação do aqui e agora, ou seja, do comportamento dessa pessoa e daquilo que são as suas dificuldades”.
Por fim, “existem instrumentos de observação que permitem, de uma forma sistemática, pôr a pessoa a fazer determinado tipo de tarefas que estão devidamente aferidas para populações de pessoas com autismo e sem autismo, e nos permitem a abordagem diagnóstica”, conclui.
Andreia passou por todo este processo. “Foram seis sessões em que fizemos uma quantidade enorme de testes”, relata.
“Não foram só testes relacionados especificamente com a neurodivergência e o autismo”, aponta. Também “fizeram testes de despiste de distúrbios de personalidade, ansiedade e depressão, e até de QI (Quociente de Inteligência)”.
Na sexta sessão, em junho de 2023, Andreia recebeu um relatório e foi oficialmente diagnosticada com uma perturbação do espetro do autismo nível 1 de suporte.
Mais tarde, também foi diagnosticada com perturbação de hiperatividade e défice de atenção (PHDA). “Acabei por perceber que é super comum, são duas condições que coexistem muitas vezes”, conta.
Quais são os vários níveis de autismo e o que os distingue?
Carlos Filipe explica que “as perturbações do espectro do autismo são perturbações do neurodesenvolvimento, que “ocorrem durante o desenvolvimento pré-natal”.
As “alterações funcionais” específicas determinam “as alterações ao nível da coordenação motora, da integração das sensibilidades, da comunicação (quer no sentido da capacidade da comunicação, quer no entendimento) e da rigidez comportamental”, esclarece.
Segundo Carlos Filipe, dentro deste quadro existem três níveis. “O nível 3, que é o mais grave, abrange as pessoas que estão completamente dependentes de terceiros em todas as suas necessidades do dia a dia, como alimentação, higiene, segurança e saúde”.
Já as pessoas com autismo de nível 2 “têm alguma competência em termos de autonomia dia a dia, mas permanecem dependentes de terceiros em grande parte das suas atividades”.
Por fim, as pessoas de nível 1, como é o caso de Andreia, “necessitam de apoio de terceiros em coisas mais pequenas, mas têm a capacidade de ter uma vida razoavelmente autónoma”, aponta.
“Quando a médica confirmou que eu sou autista, a sensação foi de um alívio inexplicável”
“Desde que a minha psicóloga mencionou pela primeira vez a hipótese de ser autista até eu receber o relatório foram, se calhar, dois meses”, conta Andreia.
Durante esse período, o tema “tornou-se um hiperfoco” e Andreia “já estava farta de fazer pesquisa”. Ainda assim, acreditava que não ia ser diagnosticada com autismo, porque achava que “não tinha traços suficientemente autistas”.
Mas o diagnóstico confirmou-se e Andreia sentiu-se aliviada: “Quando a médica confirmou que sou autista, a sensação foi de um alívio inexplicável”.
“Eu senti mesmo que estava no limite, precisava de respostas para o que estava a acontecer comigo. E saber finalmente o que é, encontrar uma explicação, hoje em dia, permite-me ter uma qualidade de vida muito superior à que tinha”, confessa.
Ainda assim, nem tudo foi um mar de rosas e Andreia teve de passar por um processo de aceitação e adaptação.
“Primeiro vem o alívio, a seguir confrontamos o mundo”, porque, admite, “com este novo pedaço de informação, as coisas não são propriamente fáceis”. Mas, reitera, “no geral, foi com alívio e felicidade que recebi o diagnóstico”.
O diagnóstico trouxe a Andreia um sentido para a vida e uma clareza sobre a diferença que sentia em relação aos seus pares: “Saber que eu era diferente já sabia, o porquê é que eu não fazia ideia”.
“Eu acho que é muito difícil uma pessoa neurotípica compreender o que é crescer neurodivergente e não se fazer ideia. No meu caso, é um sentimento constante de não pertença, de não encaixar, de sentir-me quase como um alien, não humano, como se fosse de outra espécie”, relata.
Na opinião da empresária, os diagnósticos permitiram-lhe não só compreender como é que o seu cérebro e o seu corpo funcionam, mas também “encontrar esse sentimento de pertença dentro da comunidade neurodivergente”.
Aprender “a importância da neurodiversidade”, por outro lado, possibilitou-lhe ter uma vida, hábitos e rotinas que funcionam de acordo com o que precisa, deixando, ao máximo, de tentar viver como uma pessoa neurotípica.
O “dar sentido”, o “compreender o que se passou”, é exatamente um dos benefícios do diagnóstico tardio referidos por Carlos Filipe.
Na perspetiva do médico, “muitas vezes, há acontecimentos que não foram bem entendidos e esse ‘dar sentido’ pode ser, de facto, uma ajuda muito importante, independentemente da idade” em que a pessoa é diagnosticada.
O especialista explica que “não existe tratamento” para o autismo, é uma condição para a vida. Por isso, “aquilo que temos como intervenção médica tem a ver com um ajustamento das condições da envolvente às pessoas com autismo e, dentro do possível, das pessoas com autismo à sua envolvente”.
Como quadros de “ansiedade, depressão, alterações do comportamento e do sono são mais frequentes em pessoas com autismo”, dado que “a própria condição facilita o seu aparecimento”, é importante tratar estas “comorbilidades”.
Tendo em conta que “as manifestações das comorbilidades são diferentes nas pessoas com autismo”, torna-se ainda mais importante o diagnóstico atempado, para que seja possível “fazer uma intervenção ajustada”.
Andreia não tem uma opinião vincada sobre se preferia ter sido diagnosticada na infância. “Por um lado, gostaria de saber desde sempre que sou autista e hiperativa, acho que isso me ajudaria, no geral”, afirma.
Por outro, continua, “tendo em conta a altura da minha infância, os anos 90, não sei até que ponto ter esses diagnósticos de forma oficial não iam até aumentar a discriminação que haveria em relação a mim”.
Das mudanças nas relações à falta de apoio no SNS: Como mudou a vida de Andreia
“O meu diagnóstico é público”, adianta Andreia ao Viral. “Eu contei a toda a gente, tanto a familiares como no meu meio profissional. Algumas pessoas aceitaram muito bem, outras nem tanto, portanto, houve algumas relações que mudaram”, admite.
Andreia conta que, a partir do momento em que começou a perceber as suas necessidades e passou a agir de acordo com elas, começou a sentir resistência por parte de algumas pessoas.
“Algumas relações pessoais ficaram mais fragilizadas, por haver um desconhecimento e também uma falta de interesse em passar a conhecer e a incluir”, revela.
Na visão de Andreia, isto acontece, porque o autismo e a PHDA “são condições invisíveis”.
“Ao contrário de uma pessoa com uma deficiência motora, eu posso estar num grande sofrimento, completamente superestimulada, e passar despercebido a quem está à minha volta”, expõe.
Depois do diagnóstico de autismo, Andreia continuou a ter acompanhamento de psicologia e passou a ser também “acompanhada por um psiquiatra especialista em autismo” que, mais tarde, a diagnosticou com PHDA.
Contudo, sempre foi acompanhada no setor privado, porque não teve acesso a qualquer apoio por parte do Sistema Nacional de Saúde (SNS).
“No fim do ano passado, fiz um requerimento para ir à junta médica para pedir o atestado de incapacidade, e disseram-me que estão com três anos de atraso a chamar as pessoas para a junta médica. Por isso, da parte do SNS, zero, completamente zero apoio”, lamenta.
“As minhas ambições profissionais não mudaram, expandiram”
Antes do diagnóstico de autismo, Andreia “já era gestora de projetos europeus e especialista em investigação e desenvolvimento de inovação na área da educação e formação”.
Dentro dessa área, sempre teve “um interesse muito especial em desenhar projetos que viessem a melhorar as condições de vida das populações mais desfavorecidas”, trabalhando, por exemplo, “na área da igualdade de género e das questões LGBTQIA+”.
Em 2022, fundou a IMPACT sci., com o objetivo de dedicar-se exclusivamente a projetos de investigação que estivessem alinhados com os seus valores e interesses.
No ano seguinte, quando o diagnóstico chegou, a descoberta não a parou: “As minhas ambições profissionais não mudaram, expandiram.”
Andreia explica que os públicos alvo com que trabalha acabaram por se enriquecer. Por exemplo, adianta, “se eu tenho um projeto sobre igualdade de género, vou incluir mulheres neurodivergentes”.
Na visão de Andreia, “é super importante” desenvolver projetos como este, “porque há muita informação falsa ou desatualizada a circular”.
“Somos todos um bocadinho autistas”: O problema da vulgarização da condição
Segundo Carlos Filipe, há um fenómeno atual para o qual não consegue arranjar uma explicação. O médico tem presenciado algumas situações de “pessoas que vêm reivindicar o diagnóstico” de autismo, “como se fosse um direito”.
“Eu nunca vi ninguém reivindicar um diagnóstico de depressão, ou de tuberculose, ou de cancro”, salienta.
O psiquiatra lembra que “ter um diagnóstico é uma consequência de uma avaliação médica, que determina a existência de uma patologia”.
Por isso, na perspetiva do especialista, fazer isto “é o perfeito contrassenso e é um risco para quem, de facto, não reivindicando o diagnóstico, merecia que fosse feito”.
Andreia também admite já ter ouvido expressões como “somos todos um bocadinho autistas ou PHDA”. E, refere, essas ideias “têm um impacto negativo nas pessoas neurodivergentes, porque a sua experiência no mundo continua a ver invalidada”.
No entanto, considera que a solução também não é parar de falar destas perturbações.
“Pelo contrário, acho que quanto mais se falar melhor”, porque é assim “que cada vez mais pessoas vão perceber que são neurodivergentes e vão também, elas próprias, conseguir educar o resto da comunidade”, sustenta.
“Vivemos num mundo que está constantemente a negar ou a ridicularizar o diagnóstico”
Desde o momento em que Andreia se questionou sobre se teria autismo até ao momento em que foi diagnosticada, tem vivido um percurso lento de aceitação.
“Ainda hoje ponho em causa, às vezes, apesar de ter três relatórios de médicos especialistas diferentes a indicar que sou autista e tenho PHDA, porque vivemos num mundo que está constantemente a negar ou a ridicularizar o diagnóstico”, confessa.
Andreia dá como exemplo uma experiência recente em que sentiu que a sua condição não foi levada a sério.
“Fui a uma consulta médica devido a outra condição e levei todos os meus exames. Só o fiz porque é uma condição que também ocorre muitas vezes em pessoas autistas”, adianta.
Mas a reação do profissional que a atendeu não foi a que esperava.
“Mesmo após ler os meus três relatórios de diagnóstico, ele não acreditava que eu era autista. E, no fim da consulta, disse-me, meio a rir,: ‘Olhe, você até pode ter autismo, mas é um autismo muito leve, você é inteligente’. Como se uma pessoa autista não pudesse ser inteligente e houvesse autismo leve ou pesado”, relata.
Também em contexto social e até profissional, Andreia conta que também se encontra muitas vezes em situações discriminatórias e preconceituosas.
Em dias mais difíceis e em certos contextos, Andreia informa que é autista para, caso se sinta mal, as pessoas estarem avisadas. Contudo, por vezes, a reação não é positiva.
“Se eu aparecer à frente de alguém e disser que sou a diretora de uma empresa, tratam-me de uma forma. Se eu apareço e digo que sou autista, tratam-me como se fosse uma criança”, expõe. “É uma luta diária”, admite.
Na visão de Andreia, ainda “falta fazer muito” E o caminho, defende, “passa por apoiar e amplificar o trabalho que já está a ser feito por organizações de autoadvocacia, geridas por pessoas autistas, que estão a fazer trabalho para pessoas autistas, de acordo com as suas prioridades”. Andreia dá o exemplo da Associação Portuguesa Voz do Autista, onde é voluntária.