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“Terapias de conversão”: os riscos de uma prática que a ONU considera “tortura”

24 Jun 2024 - 08:30

“Terapias de conversão”: os riscos de uma prática que a ONU considera “tortura”

A homossexualidade deixou de ser considerada uma doençamais de 50 anos, mas muitas pessoas – frequentemente ligadas a grupos religiosos – continuam a acreditar que a orientação sexual e a identidade de género são passíveis de “cura” e que as chamadas “terapias de conversão” podem tornar a pessoa heterossexual ou cisgénero. 

No âmbito do mês do orgulho LGBTQIA+, que se assinala em junho, duas especialistas em saúde mental alertam para os riscos associados às chamadas “terapias de conversão”.

O que são as “terapias de conversão”?

O termo “terapias de conversão” deve ser usado entre aspas, dado que estas práticas não são tratamentos validados pela ciência e as diferentes orientações sexuais ou identidades de género não são doenças.

Aliás, “há um consenso científico de que as questões de orientação ou identidade de género não são passíveis de serem ‘curadas’”, explica ao Viral, Luana Cunha Ferreira, psicóloga na Associação Casa Estrela-do-mar e professora na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa.

O objetivo destas práticas – consideradas crime em alguns países, como Portugal – é levar a pessoa LGBTQIA+ a integrar “ainda mais o estigma relativamente a estas características e orientações”, tornando-as em “algo negativo sobre si próprio” e atuando no sentido de “remover uma parte que é real, autêntica e saudável da pessoa”, prossegue a psicóloga.

Também a psiquiatra Manuela Silva, professora auxiliar na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e investigadora do Lisbon Institute of Global Mental Health, refere que os indivíduos que impõem estes procedimentos “assumem que a identidade LGBTQ é uma doença que deve ser curada, quando a comunidade científica afirma que não é doença” que, por isso, “não precisa de ser ‘curada’ ou ‘tratada’”.

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“São práticas amplamente desacreditadas que têm como premissa a crença de que a orientação sexual ou identidade de género de um indivíduo pode ser alterada e que fazê-lo é desejável para o indivíduo, para a família ou para a comunidade”, aponta.

Existem três abordagens principais de “terapias de conversão”:

  • Psicoterapia – em que se procura identificar uma causa para a orientação sexual ou identidade de género numa experiência anormal, ou criar uma associação de aversão (utilizando, por exemplo, eletrochoque ou medicação indutora de vómito) para combater a atração;
  • Abordagem médica – o objetivo é corrigir um alegado desequilíbrio biológico com medicamentos ou injeções hormonais e esteroides que estará na origem da homossexualidade ou da identidade de género;
  • Intervenções baseadas na fé – nas quais um conselheiro espiritual tenta livrar o indivíduo do suposto “mal”, seja com orações, insultos, limpeza ritual, espancamento ou exorcismos.

Luana Cunha Ferreira garante que estas técnicas “nocivas” são praticadas, muitas vezes, “por profissionais não credenciados ou por profissionais que, sendo credenciados, estão alinhados com organizações religiosas”. Ou seja, o principal objetivo de quem realiza estes procedimentos “não é servir a saúde mental das pessoas, mas sim as principais orientações da própria religião”.

No mesmo sentido, Manuela Silva afirma que “as ‘terapias de conversão’ representam uma forma de não aceitação, discriminação, estigmatização e rejeição social”, podendo “encorajar as pessoas a esconder a sua orientação sexual ou identidade de género”.

Num relatório publicado pela Associação Americana de Psicologia sobre as respostas terapêuticas apropriadas para a orientação sexual, refere-se que os estudos recentes realizados sobre esta temática “não providenciam o tipo de informação necessária para responder às questões de segurança e eficácia”. 

Na análise a vários estudos concluiu-se que “uma alteração duradoura da orientação sexual do indivíduo é incomum” e que os participantes “continuavam a experienciar atração por indivíduos do mesmo sexo após os esforços para mudar a orientação sexual”. Também não foram registadas “alterações significativas na atração por indivíduos de outros sexos que pudessem ser validadas empiricamente”.

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As Nações Unidas apelaram aos vários países para que banissem as “terapia de conversão”. Afirmaram, num relatório sobre esta temática, que estas são “intervenções profundamente prejudiciais que se baseiam na ideia médica falsa de que as pessoas LGBT e de outros géneros diversos estão doentes”. Para “curar” esta alegada doença são infligidos “dor severa e sofrimento”, que está associado a “danos psicológicos e físicos de longa duração”.

Neste documento, a ONU afirma que estas práticas “violam a proibição de tortura e de maus-tratos, uma vez que parte do princípio de que as pessoas com diversidade sexual ou de género são de alguma forma inferiores – moral, espiritual ou fisicamente – em comparação com os seus pares heterossexuais ou cisgénero e devem modificar a sua orientação ou identidade para remediar essa inferioridade”.

“Todas as práticas que tentam a conversão são inerentemente humilhantes, degradantes e discriminatórias. Os efeitos combinados de sentimento de impotência e extrema humilhação geram sentimentos profundos de vergonha, culpa, auto-aversão e inutilidade, que podem resultar num autoconceito prejudicado e em mudanças duradouras de personalidade”, pode ainda ler-se.

Várias organizações internacionais – entre elas a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Psicólogos Portugueses – emitiram pareceres contra a realização de “terapias de conversão” em pessoas LGBTQIA+. 

Além de reforçarem que a orientação sexual e identidade de género não são doenças, reiteram também que estas práticas de conversão não respeitam os padrões éticos/deontológicos da profissão e podem representar potenciais riscos para a saúde psicológica das pessoas.

Quais os danos associados às “terapias de conversão”?

Além de serem “ineficazes”, estes procedimentos podem “causar danos” na saúde física e mental do indivíduo, alertam as duas especialistas ouvidas pelo Viral.

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Pessoas submetidas a “terapias de conversão” apresentam baixa autoestima, ideação suicida, tentativas de suicídio, utilização de substâncias e depressão e ansiedade. Podem também sofrer com úlceras gástricas, perturbações sexuais e de comportamento alimentar ou enxaquecas.

Um artigo sobre o impacto das “terapias de conversão”, publicado em 2020, avança que os adultos expostos a estas práticas “tinham perto do dobro da probabilidade de ideação suicida ao longo da vida, 75% de aumento de probabilidade de planear uma tentativa de suicídio e 88% de aumento de probabilidade de tentativa de suicídio com pequena lesão”.

Luana Cunha Ferreira acrescenta que os riscos “encontram-se aumentados tendo em conta a idade em que estes procedimentos são feitos”, lembrando que “os adolescentes são particularmente suscetíveis a sofrerem impactos gravíssimos deste tipo de intervenções”. 

Nos jovens adultos, a probabilidade de realizar uma ou mais tentativas de suicídio era “mais do dobro”, avança outro artigo publicado também em 2020. 

Perante estes números, os autores do artigo destacam “os efeitos prejudiciais desta prática antiética numa população que já experimenta riscos significativamente maiores de suicídio”.

Manuela Silva lembra que estas práticas representam também “uma forma de não aceitação, discriminação, estigmatização e rejeição social”. A psiquiatra aconselha as pessoas que foram vítimas destas práticas a “procurar o apoio de intervenções afirmativas da orientação sexual e da identidade de género”.

“[Tenham] sempre em mente que as várias orientações sexuais e identidades ou expressões de género são uma expressão da riqueza e diversidade dos seres humanos e que não devem ser reprimidas ou alteradas”, remata.

Também Luana Cunha Ferreira sublinha que é importante “disseminar ao máximo a informação de que estas práticas são nocivas e que não são sustentadas em termos científicos”. 

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A psicóloga destaca a importância das técnicas afirmativas de género no bem-estar das pessoas LGBTQIA+, assim como a promoção da educação sexual nas escolas baseada na aceitação.

Portugal entre os países que criminalizaram as “terapias de conversão”

Vários países responderam afirmativamente ao apelo da ONU para banir as “terapias de conversão”. França tornou-se, em 2021, o segundo país europeu a proibir completamente esta prática, juntando-se a Malta que já tinha aprovado a proibição em 2016. Seguiu-se a Alemanha e a Grécia; em Espanha várias regiões autónomas também baniram essas práticas.

Em 2022, o Parlamento Europeucondenou fortemente todos os tipos de discriminação contra pessoas LGBTI”, nos quais incluía as “terapias de conversão”. Apelou também aos diferentes Estados-membros da União Europeia para que banissem estes procedimentos.

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Portugal aprovou a alteração ao Código Penal em 2023 para proibir “quaisquer práticas destinadas à conversão forçada da orientação sexual, identidade ou expressão de género”. A alteração à lei surgiu de um projeto de lei do PS, Bloco de Esquerda, Livre e PAN, que contou com apoio da Iniciativa Liberal e do PCP. 

Estas iniciativas legais seguem os princípios determinados pelo Conselho da Europa, que afirma “não existir lugar para as práticas de conversão da orientação sexual, identidade e expressão de género”. Num artigo publicado em 2023, afirma-se que estes procedimentos “entram em conflito com um consenso esmagador dos organismos internacionais científicos e para os direitos humanos”.

24 Jun 2024 - 08:30

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