Terapia com células CAR-T: A história de Priscila
Priscila foi a primeira criança a receber o tratamento com células CAR-T em Portugal. Em declarações ao Viral, a mãe de Priscila e o médico responsável pelo caso explicam o que é, como funciona, a que doenças se destina esta terapia que pode mudar o futuro do tratamento do cancro.
Priscila vivia em Cabo Verde, tinha 12 anos e uma única tarefa: ser criança. Tudo mudou quando um dia, algures em 2022, deram nome aos sintomas que começava a apresentar: tinha leucemia lifoblástica aguda do tipo B.
O cansaço extremo, a palidez, as tonturas, as dores ósseas são os sintomas mais comuns nas crianças diagnosticadas com este tipo de leucemia, cujas análises também costumam apontar uma anemia resultante da diminuição dos glóbulos vermelhos.
É também frequente estes jovens terem infeções de repetição por deficiência de glóbulos brancos e episódios frequentes de hemorragia (como sangrar das gengivas), nódoas negras sem razão aparente ou apresentarem umas pequenas manchas na pele (petéquias).
Segundo a Organização Mundial de Saúde, o grupo das leucemias é, precisamente, o mais frequente em todo o Mundo entre as doenças oncológicas que afetam a população pediátrica e os dados nacionais vão na mesma direção, como divulgou o Portal de Informação Português de Oncologia Pediátrica, que compilou os dados do Registo Oncológico Nacional.
Atendendo à gravidade do diagnóstico recebido em Cabo Verde, o melhor plano terapêutico seria Priscila receber o tratamento em local diferenciado, como o Serviço de Pediatria do IPO de Lisboa, e assim aconteceu, graças aos protocolos de cooperação entre os dois países.
“Chegámos a 12 de junho de 2022. Ela vinha muito ansiosa, com stress, ainda sem saber o que teria de enfrentar pela frente”, lembra Ludmila Semedo, mãe de Priscila, em declarações ao Viral.
Em Cabo Verde, ficaram os dois irmãos de Priscila, o pai e a avó: “Desde que estamos cá, ela mantém o contacto pelas redes sociais, mas sente muita falta [da família], sobretudo da avó que cuidava dela”, conta.
Quando chegou ao IPO de Lisboa, Priscila fez a habitual bateria de exames para confirmar os detalhes do diagnóstico e, nessa altura, “foi identificada uma alteração genética que não tem impacto no tratamento inicial de uma leucemia”, explica Ximo Duarte, o oncologista pediátrico do Serviço de Pediatria do IPO de Lisboa que é o responsável pelo caso.
Na posse de toda esta informação, estava na hora de partir para o tratamento e, recorda o especialista, Priscila “foi cumprindo as várias fases do tratamento, mas cedo mostrou ser muito sensível aos efeitos da quimioterapia e apresentou sintomas de toxicidade relevantes” associados a esta terapêutica.
Ainda assim, a criança entrou em remissão após o primeiro tratamento. Aliás, a taxa de sucesso dos tratamentos convencionais na leucemia linfoblástica aguda do tipo B é bastante elevada.
Segundo Ximo Duarte, “a quimioterapia é muito eficaz e, em 90 % destas crianças, a doença fica tratada [com esta terapêutica], muito embora tenha efeitos secundários a curto, médio e a longo prazo”. Na realidade, acrescenta, “nenhum tratamento está isento de toxicidade”.
Apesar dos efeitos colaterais iniciais que apresentou, Priscila conseguiu prosseguir com as fases seguintes do acompanhamento no hospital. Até que, numa avaliação de rotina, a equipa verificou “existir uma recaída da leucemia ao nível do sistema nervoso central”.
“Tinha também alguns vestígios de doença novamente na medula [óssea], mas havia uma percentagem de células leucémicas mais elevada, sobretudo, ao nível do líquido cefalorraquidiano”, lembra Ximo Duarte.
Iniciou-se novo tratamento e, mais uma vez, Priscila começou por responder à terapêutica, mas acabou por ter nova recaída.
“Nesta altura pensámos no transplante de medula óssea e foi identificada a mãe como potencial dadora, mas a menina voltou a ter uma terceira recaída e, nesse momento, solicitámos o uso de células CAR-T”, adianta o médico.
Isto porque, continua, “estávamos perante uma doente a quem não conseguimos controlar a doença e que já não era candidata para transplante, pois a doença não estava num nível suficientemente controlado para se efetuar a intervenção em segurança e com as melhores probabilidades de sucesso”.
Priscila estava, assim, prestes a tornar-se na primeira criança a receber o tratamento com células CAR-T em Portugal por cumprir os critérios definidos na aprovação da terapêutica pediátrica em causa: utilização em doentes até aos 25 anos com doença refratária, ou seja, resistente ao tratamento convencional, em recidiva após transplante ou em segunda recidiva.
O que é a terapia com células CAR-T?
A terapêutica que utiliza as células CAR-T pretende “redirigir a imunidade natural que temos no organismo contra um alvo terapêutico, neste caso nas células da leucemia, que queremos eliminar”, começa por explicar o especialista.
Por isso, esta terapia entra no grupo dos tratamentos que usam o próprio sistema imunitário do doente – a imunoterapia – para combater o cancro.
No caso da leucemia linfoblástica aguda em idade pediátrica, são usadas células da própria criança doente, nomeadamente os linfócitos – células dos glóbulos brancos com a função de eliminar agentes estranhos no organismo – que nos doentes oncológicos “não tiveram a capacidade de identificar as células da leucemia que deveriam ser eliminadas”, explica Ximo Duarte.
Essas células T são colhidas e alvo de uma modificação para inserir no código genético desses linfócitos a capacidade de produzir uma proteína quimérica – um recetor artificial criado em laboratório, denominado recetor quimérico de antigénio (CAT, em inglês) – na superfície, o que permite às células T identificarem um alvo nas células que se pretende eliminar, ou seja, os linfoblastos da leucemia.
Esta terapêutica com células CAR-T chegou a Portugal em 2019, quando o IPO do Porto começou a tratar doentes oncológicos com outra terapia comercial dirigida apenas a adultos, mas o tratamento pediátrico ainda não tinha avançado em território nacional.
Já tinham sido reportados casos de crianças portuguesas tratadas com esta terapia, mas que tinham ido ao estrangeiro receber o tratamento que ainda não estava disponível para utilização nas instituições nacionais.
E ser o primeiro caso tratado pela equipa do Serviço de Pediatria era algo que preocupava Ludmila Semedo. “Era a primeira vez que [o tratamento] seria feito no IPO e tive muitas dúvidas em avançar. Não sabia qual seria o resultado, o que ia provocar e só me restou confiar em Deus”, admite a mãe, confidenciando que ver a postura da filha perante a proposta da equipa a ajudou a encontrar alguma serenidade.
“Ela primeiro também ficou ansiosa, mas pouco tempo depois mostrou-se logo muito disposta a fazer o tratamento, o que me deixou mais tranquila”, relata.
E assim foi. Em dezembro de 2022 Priscila recebeu a infusão com as células que foram geneticamente modificadas em laboratórios nos Estados Unidos da América da empresa que comercializa a terapêutica e tornou-se a primeira criança a receber o tratamento em instituições nacionais.
A espera por um resultado positivo
Depois da infusão com as células modificadas, por um processo semelhante a uma transfusão de sangue (como é explicado na página da Associação Portuguesa Contra a Leucemia), “a primeira avaliação da resposta é efetuada 28 dias depois do tratamento”, diz Ximo Duarte.
O oncologista pediátrico explica o porquê: “Antes de efetuar a infusão [das células CAR-T no doente] fazemos uma quimioterapia de linfodepleção com o objetivo de controlar o máximo possível os linfócitos da criança para que não haja uma competição entre estes e as células CAR-T que vamos administrar e para facilitar a expansão e proliferação das células modificadas”.
“Como esta quimioterapia também controla as células da leucemia, temos de esperar até ao dia 28 porque, por esta altura, o efeito que veremos já não depende da quimioterapia que se fez antes, mas da ação das células CAR-T que demos ao doente e já conseguimos perceber se estas foram eficazes a eliminar a doença”, remata.
Sobre a eficácia do tratamento, o ensaio que levou à aprovação da terapêutica na população pediátrica mostrou que a resposta imediata às CAR-T rondou os 82% e a revisão mais recente dos dados, com o acompanhamento dos doentes tratados ao longo do tempo, mostrou que a resposta à terapia ao três anos vai diminuindo para os 45%.
Apesar de se ir perdendo alguma resposta dos doentes à terapêutica com o decorrer do tempo, Ximo Duarte considera que os resultados apresentados são bastante positivos.
Afinal, “estamos perante uma doença que não conseguimos controlar pelos meios convencionais e com esta terapêutica, em 28 dias, conseguimos que fique controlada [em mais de 80% dos casos] e isso diz muito sobre a sua eficácia”.
Embora reconheça que o desejável é ter “uma eficácia sustentada no tempo e que estas células CAR-T persistam no organismo da criança o resto da vida para eliminar alguma célula da leucemia que tenha resistido ao tratamento”, o especialista lembra também que esta terapêutica é a resposta para “uma população cuja probabilidade de sobrevivência é muito mais baixa do que as respostas apresentadas a esta imunoterapia, e, mesmo não sendo a resposta [prolongada] que gostaríamos, continua a ser muito boa”.
No caso da Priscila, passadas quatro semanas da infusão, os resultados revelaram que não havia vestígios da doença. Decorridos seis meses, a menina continua a apresentar uma resposta muito positiva ao tratamento. “Até agora não tem qualquer sinal da doença nem no sistema nervoso central, nem na medula e está bem”, revelava o médico à data da entrevista, feita no início de junho de 2023.
A mãe confirmava que, à data, Priscila não tinha “nada, nem sintomas, nem células cancerígenas”.
Agora, já com 13 anos, a única coisa que a Priscila tem dentro dela é uma vontade enorme de voltar a ser a adolescente que era, regressar aos estudos – interrompidos pela rotina de tratamentos – e fazer novos amigos assim que regressar à escola. A continuar a correr tudo bem, a matrícula está programada “já no próximo ano letivo”, assegura a mãe.
A terapia com células CAR-T tem efeitos secundários?
Como em qualquer tratamento, esta imunoterapia também apresenta alguns efeitos adversos que podem ser imediatos, a médio prazo ou a longo prazo.
O efeito que é permanente – enquanto persistirem os efeitos das células CAR-T – e comum a todos os doentes que recebem esta terapêutica é uma depleção dos linfócitos B.
Para fazer frente à diminuição destas células do sistema imunitário, Priscila está obrigada a ir ao IPO de Lisboa “fazer uma infusão de imunoglobulina a cada quatro semanas”, refere Ximo Duarte, adiantando ainda que a menina, tal como aconteceu noutros casos reportados, também sofreu de alguns efeitos leves transitórios, como perda de peso e de apetite.
Estão também descritos alguns efeitos a médio prazo, como a diminuição de neutrófilos, outro tipo de glóbulos brancos, que deixa a pessoa “mais sujeita a ter infeções”.
Por isso, “é preciso uma monitorização cuidada”, refere o especialista, acrescentando que também está descrita uma diminuição das plaquetas, componentes do sangue que ajudam na coagulação do sangue.
Efeitos graves reportados nos estudos foram raros, mas ainda assim existiram.
Entre eles o oncologista pediátrico nomeou a síndrome de libertação de citocinas, “uma reação inflamatória exagerada que acontece quando as células CAR-T encontram o alvo e começam a libertar todos os mediadores de inflamação que servem para eliminar as células da leucemia, mas esses mediadores depois ficam a circular em grande quantidade pelo organismo” o que acaba por resultar numa inflamação generalizada.
Nestes casos, o doente fica com febre, dificuldades respiratórias, com pressão arterial baixa, sintomas que se forem de grau 1 ou 2, menos graves, se podem tratar com alguma facilidade, mas nos graus 3 e 4, mais graves, podem ameaçar a vida. Por este motivo, é fundamental contar com o apoio das equipas de cuidados intensivos pediátricos e no caso do IPO de Lisboa contam com o apoio do Hospital de Santa Maria e do Hospital de Dona Estefânia.
Outro possível efeito adverso grave é a síndrome de neurotoxicidade associada a célula imunoefetora, resultante também desta libertação de imunomediadores, com efeitos ao nível do sistema nervoso central.
Nos casos de menor gravidade, pode passar por alguma dificuldade em articular palavras, na escrita e alguma sonolência, mas, nos casos mais graves, “pode haver convulsões, coma e até morte, muito embora sejam raríssimos”, refere Ximo Duarte.
O futuro já está a acontecer
Tanto em adultos como em crianças e adolescentes, a investigação científica tem demonstrado a eficácia da terapia com células CAR-T sobretudo em doenças hemato-oncológicas, nomeadamente “linfomas, algumas formas de leucemia e, mais recentemente, no mieloma múltiplo”, lê-se na página do americano National Cancer Institute, em “doentes cujas possibilidades de sucesso [com o tratamento convencional] eram muito escassas”, acrescenta Ximo Duarte.
Contudo, ainda existem muitas perguntas sem resposta. Por exemplo, é necessário perceber a razão pela qual num tratamento com uma resposta inicial de 82%, em alguns casos, as células infundidas no doente vão perdendo a capacidade de responder com o passar do tempo.
O oncologista pediátrico explica que estão a ser investigadas “abordagens que possam prolongar essa resposta” Para isso, acrescenta, “precisamos perceber que fatores na criança ou na doença podem predispor a uma resposta insuficiente”.
Também estão a decorrer investigações sobre a proteína quimérica que é criada no laboratório e as suas funcionalidades.
No caso do produto para a população pediátrica, essa proteína contém um anticorpo monoclonal anti-CD19 capaz de eliminar todas as células que tenham expressão deste anticorpo na sua superfície, como é o caso das células da leucemia linfoblástica aguda do tipo B.
Aliás, lembra o especialista do IPO de Lisboa, elimina também “os linfócitos B normais do organismo que também têm expressão CD19 na sua superfície, daí o efeito secundário do tratamento que deixa a criança tratada com esta terapia sem linfócitos B e a necessitar de substituir a sua função com a administração de imunoglobulina periodicamente”.
Contudo, já se estão a testar outras hipóteses terapêuticas para a leucemia linfoblástica aguda que se destinam a outros alvos terapêuticos, como sejam anticorpos monoclonais anti-CD22, e, eventualmente, testar utilizar os dois anticorpos monoclonais em simultâneo para aumentar a eficácia a longo prazo da terapêutica.
Está também a ser investigada a possibilidade de utilizar outras substâncias que modelam o sistema imunitário, como os inibidores do PDL-1, que promovem uma melhor função das células CAR-T e até se estuda a possibilidade de utilização de células CAR-T de um dador.
Com todas estas linhas de investigação em andamento, é claro para Ximo Duarte que esta “é uma área com imenso desenvolvimento” que trará respostas para doentes que não têm neste momento outras propostas clínicas de tratamento.
Certo é que para as indicações atuais “o futuro já se está a escrever” com as CAR-T, pelo menos no IPO de Lisboa. Um segundo caso já recebeu, em final de maio, a terapêutica com células CAR-T, desta feita um menino também com leucemia linfoblástica aguda do tipo B que recaiu após o tratamento com quimioterapia e após o transplante de medula óssea.
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