É mais potente do que a heroína? 10 perguntas e respostas sobre o fentanil
O Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências (ICAD) revelou ao Expresso que existem 12 pessoas em tratamento para dependência de fentanil em Portugal. Um dos casos foi reportado este ano e oito das 12 pessoas usavam outras drogas em conjunto com o fentanil.
Em 2022, nos Estados Unidos da América, mais de 73 mil mortes por overdose de substâncias foram associadas ao abuso de fentanil. Com o reporte de novos casos de dependência de fentanil em Portugal, instalaram-se várias dúvidas sobre este medicamento. É mais potente do que a heroína? Em que situações costuma ser receitado? Pode causar dependência?
Em esclarecimentos ao Viral, Gustavo Tato Borges, presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública (ANMSP), Diniz Cortes, médico de clínica Geral e Familiar e especialista em adictologia, e João Costa Pedro, psiquiatra na área de tratamento de comportamentos aditivos, esclarecem 10 questões sobre o fentanil.
1 – O que é o fentanil?
Os três médicos questionados pelo Viral começam por esclarecer que o fentanil é um opioide sintético usado, por norma, para controlo de dor aguda ou dor crónica incapacitante.
Segundo João Costa Pedro, “o fentanil deriva da flor de um determinado tipo de papoila, assim como a morfina” ou a “heroína”. Gustavo Tato Borges acrescenta que o fentanil é “criado em laboratório, com regras muito específicas, para ser o mais eficaz e seguro possível”.
2 – O fentanil é mais potente do que a morfina e a heroína?
Sim, é verdade. João Costa Pedro salienta que o fentanil “tem uma ação semelhante à morfina e à heroína, mas apresenta uma potência bastante mais elevada (100 vezes e 50 vezes mais respetivamente), o que significa que tem uma intensidade de efeito muito maior na mesma dose administrada”.
É, de facto, “um medicamento utilizado há décadas na medicina”, mas o seu “abuso e fabrico clandestino é mais recente (iniciado nos EUA)”, acrescenta a mesma fonte.
3 – Como atua no organismo?
João Costa Pedro e Diniz Cortes explicam que o fentanil atua através da ligação a recetores específicos do cérebro que controlam a dor e as emoções.
Ora, por norma, “estes recetores são ativados pelas nossas endorfinas naturais em situações em que é necessário aliviar dor ou stresse, ou em contexto de exercício, ou de prazer”, esclarece o psiquiatra.
A toma de fentanil, intervém Diniz Cortes, “provoca a diminuição, ou mesmo anulação, da nossa própria produção” de endorfinas. Isto porque “o organismo adapta-se e habitua-se a essa substância exterior”.
Por esse motivo, sustenta João Costa Pedro, “o uso repetido leva a uma dificuldade em sentir prazer ou alívio da dor na ausência de fentanil”, potenciando “uma perturbação de uso de opioides”.
4 – Em que situações costuma ser receitado?
Segundo João Costa Pedro, o fentanil é utilizado, sobretudo, “na área da oncologia e cuidados paliativos, como analgésico em cancros avançados”.
O psiquiatra salienta que este medicamento é “essencial para estes casos”, porque “possibilita o controlo da dor de pessoas com doença crónica tendencialmente intratável que já desenvolveram tolerância ao efeito analgésico de outros opioides (como a morfina)”.
Além disso, prossegue o especialista, o fentanil “pode também ser utilizado de forma pontual em contexto pós-cirúrgico”.
Por último, é, ocasionalmente, usado “no tratamento de dor crónica refratária à terapêutica por doenças não oncológicas, ou de dor esporádica grave”, aponta.
Apesar de ser um medicamento para terapêuticas muito específicas, os três especialistas questionados pelo Viral referem que, em Portugal, qualquer médico pode prescrever fentanil, independentemente da especialidade.
5 – Existem alternativas ao fentanil?
Sim, existem alternativas ao fentanil, mas “há poucas alternativas terapêuticas dentro das indicações restritas para o seu uso”, salienta João Costa Pedro. Isto porque, comparativamente aos outros opioides, o fentanil tem uma potência muito maior.
6 – A toma de fentanil pode causar dependência?
“Como opioide que é, o fentanil pode causar dependência”, salienta Diniz Cortes.
O especialista adianta que, “numa primeira fase, causa uma dependência psicológica e, posteriormente, uma dependência física”.
Mais tarde, se houver uma toma continuada, a pessoa ganha “tolerância” à substância e tem “a necessidade de consumir doses mais elevadas para obter o mesmo efeito”, acrescenta o médico.
O risco de desenvolvimento de adição, na visão de Gustavo Tato Borges, “terá, muitas vezes, a ver com a pessoa a quem é prescrita esta medicação (se tem histórico de abuso de drogas, por exemplo), a frequência e a duração de utilização”, aponta o especialista.
Tendo em conta diversos fatores (como os mencionados), de facto, “uma dose normal pode ser suficiente para causar uma sensação de dependência para algumas pessoas, [enquanto] outras conseguirão fazer o tratamento durante o período prescrito” sem qualquer consequência.
7 – Que sinais podem indicar uma dependência de fentanil?
Como esclarece o psiquiatra na área de tratamento de comportamentos aditivos, existem vários sinais que indicam a presença de uma perturbação de uso de opioides, nomeadamente fentanil.
São sinais de alerta, por exemplo, “usar a substância em dose superior à prescrita ou à que a pessoa pretendia inicialmente” e “durante mais tempo do que devia”.
Outros indicadores de dependência são: “passar muito tempo a procurar, usar ou recuperar dos efeitos do fentanil”; “sentir vontade psicológica intensa de usar fentanil (‘craving’)”; e “usar fentanil em situações que colocam em risco a pessoa, como conduzir sob o efeito da substância”, aponta o médico.
Para mais, o “incumprimento de responsabilidades laborais, sociais, familiares ou escolares, decorrente do uso de fentanil”, e a continuação do uso do opioide apesar desse impacto também são sinais de dependência.
Além disso, acrescenta, “o desenvolvimento de tolerância aos efeitos desejados, com necessidade de doses superiores para obtenção do mesmo efeito”, e o surgimento de “sintomas de abstinência após redução ou suspensão do consumo” revelam a presença de uma perturbação de uso de opioides.
8 – O risco de morte associado à dependência de fentanil é elevado?
Os três especialistas consultados pelo Viral adiantam que há um grande risco de morte associado à dependência de fentanil. Aliás, “o risco de morte é superior com o abuso de fentanil do que com o abuso de heroína”, salienta João Costa Pedro.
Isto porque, justifica Diniz Cortes, “devido à sua potência, as quantidades capazes de produzir depressão respiratória [parar de respirar] e morte são muito pequenas, havendo uma margem muito curta entre o consumo tolerado e o consumo letal”.
Outras causas de mortalidade ou morbilidade, acrescenta João Costa Pedro, “incluem sequelas decorrentes do compromisso da normal oxigenação de órgãos vitais, como o cérebro ou coração (como AVC e enfartes)”.
Além disso, a dependência de fentanil pode ter outras consequências, como “letargia crónica, sedação, obstipação, desorientação, náuseas, uso de drogas endovenosas, violência sexual, abandono escolar e laboral”, refere o psiquiatra.
9 – Como tratar esta dependência?
Gustavo Tato Borges explica que o tratamento da dependência de fentanil – tal como de outras substâncias aditivas – “é um processo demorado e complicado”, que requer “uma equipa multidisciplinar”.
Segundo Diniz Cortes, “um indivíduo que seja dependente de um determinado opioide pode, para impedir ou anular o aparecimento da síndrome de abstinência pela falta do opiáceo, ser admitido numa unidade de tratamento”.
João Costa Pedro explica que “o tratamento pode ser farmacológico, não farmacológico ou ambos (o mais comum)”. Do ponto de vista farmacológico, “o tratamento utilizado para a dependência de heroína também é eficaz no tratamento da dependência de fentanil”.
Os medicamentos utilizados neste contexto são os “agonistas opioides (metadona), agonistas parciais opioides (buprenorfina) e antagonistas opioides (naltrexona)”, refere o psiquiatra.
Importa sublinhar que “estes fármacos “podem ser utilizados de diferentes formas e com durações variadas de tratamento, tendo como objetivo alcançar a abstinência, reduzir risco e prevenir recaída”, frisa.
10 – Que estratégias podem ser adotadas para prevenir o uso indevido de fentanil?
Na perspetiva de João Costa Pedro, “os casos de dependência em Portugal até agora reportados são bastante limitados, especialmente quando comparados com outras substâncias de abuso mais prevalentes na realidade portuguesa e da União Europeia”.
Contudo, os médicos que prestaram esclarecimentos ao Viral admitem que os perigos associados à toma de fentanil revelam a importância de implementar medidas de precaução e prevenção a nível nacional.
Segundo os especialistas, o primeiro passo é haver uma revisão das normas da Direção-Geral da Saúde (já em curso), atualizadas pela última vez em 2008 (ver aqui).
Para Gustavo Tato Borges, pode ser necessário haver “uma maior regulamentação” na prescrição de fentanil. Atualmente, a prescrição deste fármaco “não está restringida a um grupo profissional, uma carreira médica, ou uma especialidade médica, sendo que qualquer médico pode prescrevê-lo”.
No seguimento do apontamento do médico de saúde pública, João Costa Pedro considera que deve haver uma “sensibilização dos médicos sobre os riscos do abuso desta substância e definição clara das indicações restritas para a sua prescrição”.
Além disso, na visão do psiquiatra, é necessário haver uma “vigilância de padrões de prescrição abusiva por parte dos profissionais e necessidade de justificação em caso de prescrição fora das indicações formais”.
Por último, salienta, o “acesso fácil e tendencialmente gratuito a equipas multidisciplinares de tratamento do uso abusivo desta substância” e a “literacia de saúde para a população” também são medidas importantes.
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