Verdade em Saúde – uma barreira invisível

Verdade em Saúde – uma barreira invisível

Por Raul Marques Pereira

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A verdade é indiscutível. A malícia pode atacá-la, a ignorância pode ridicularizá-la, mas, no fim, lá está ela.

Winston Churchill

O conceito de verdade em saúde, embora aparentemente linear e indiscutível, sofreu uma evolução notável nos últimos dois anos. A necessidade de fact-checking perante uma crise global de saúde e de informação veio por a nu as fragilidades de um modelo de medicina que, há muito, precisava de ser discutido e reformulado.

Vale a pena, por isso, pensar na barreira invisível que determinou fenómenos de massas que se negam a discutir e a compreender dois aspetos fundamentais em saúde: 1: o que é a evidência científica; 2: como é que o que é cientificamente evidente em saúde hoje passa a ser uma “mentira” amanhã.

Ao contrário do que muitas vezes se pensa, a medicina é tudo menos uma ciência exata, tanto no conhecimento (que evolui a cada minuto) como na dependência que tem do médico (que como interlocutor do doente está sujeito às suas fragilidades individuais e circunstanciais).

Esta barreira invisível é decorrente do contexto histórico em que a medicina tem vindo a evoluir e que se cruza, inexoravelmente, com a necessidade atual de verificação de factos em saúde.

Historicamente, podemos dividir a medicina contemporânea em 3 fases, que permitem perceber uma parte significativa da fragilidade da disseminação de informação médica que vivemos neste contexto pandémico.

Todos identificamos uma fase 1 da medicina contemporânea que assentava em 3 pontos:

– Centrada no médico como figura de poder e sabedoria;

– Feita isoladamente, em pequenos consultórios;

– De carácter generalista e centrada no tratamento da doença.

Ao contrário do que muitas vezes se pensa, a medicina é tudo menos uma ciência exata, tanto no conhecimento (que evolui a cada minuto) como na dependência que tem do médico (que como interlocutor do doente está sujeito às suas fragilidades individuais e circunstanciais).

Esta fase criou a ideia do médico como ser providencial, sábio e de verdades absolutas. Aqui o fact-checking, a discussão da ciência era feita na academia e não chegava às massas. Para estas, a palavra do médico era indiscutível, quase divina.

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A partir deste modelo vivemos uma evolução gradual para a fase 2, que reflete o modelo que, traços gerais, vivemos hoje:

– Uma medicina centrada em equipas, organizada por serviços médicos e por isso menos individualista do ponto de vista médico

– Assente na diferenciação por área de saber médico e por isso muito menos generalista;

– Centrada na promoção da saúde e na elevada diferenciação no tratamento.

Aqui, surge um problema novo: o conhecimento médico afunila e passamos a ter especialistas em áreas de alto nível de especificidade, mas com menor à vontade na abordagem da pessoa. Passamos a ser tratados no serviço X do hospital Y e, muitas vezes, deixamos de ter o “nosso” médico. Aquele que nos faria o fact-checking na consulta, que nos aconselha a ler um determinado artigo e a não pensar em rumores infundados.

E, de repente, rebenta uma onda pandémica que traz consigo um tsunami de especialistas que, com as suas circunstâncias e fragilidades se colocam no olho do furacão com muito coração e, por vezes, pouca capacidade de comunicação.

É neste contexto que a população em geral é confundida com mensagens contraditórias sobre áreas de elevadíssima complexidade e que se vão cada vez tornando mais uma palete de cinzentos por contraponto ao branco e preto que esperamos da comunicação por quem faz ciência.

O conhecimento médico afunila e passamos a ter especialistas em áreas de alto nível de especificidade, mas com menor à vontade na abordagem da pessoa. Passamos a ser tratados no serviço X do hospital Y e, muitas vezes, deixamos de ter o “nosso” médico. Aquele que nos faria o fact-checking na consulta, que nos aconselha a ler um determinado artigo e a não pensar em rumores infundados.

A discussão científica, que antes era propriedade das universidades, passou a ser feita nas redes sociais, com argumentos de 280 caracteres. E, se por um lado, é bom que se democratize a discussão da ciência, por outro lado isto só é possível com comunicação eficaz.

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E a comunicação médica, seja de 1 para 1 num consultório ou de 1 para 1.000.000 numa rede social só é eficaz se assentar em definir o que não sabemos, o que temos dúvidas, o que ainda precisamos de procurar respostas. Os determinismos são momentos e a medicina é evolução, imperfeita e crua evolução.

Temos, por isso, de fazer mais pela comunicação em saúde. E esta é a oportunidade de ouro para a medicina dar este salto em conjunto com a imprensa e criar uma nova forma de estar e de fazer saúde.

Será preciso criar a disrupção necessária para um novo modelo de saúde e de perfil médico, que estabelecerá uma nova fase para a medicina contemporânea.

Uma fase totalmente distinta daquilo que conhecemos e que assentará de forma estrutural na tecnologia e em dados confiáveis comunicados eficazmente. Este novo modelo terá de possuir características únicas:

– Centrado na pessoa e focado no bem-estar global individual e familiar

– Maioritariamente online e baseada em fontes confiáveis;

– Alimentado pela facilidade de interação;

– Baseado em protocolos clínicos rápidos, robustos e replicáveis.

A barreira invisível torna-se cada vez mais real aos nossos olhos. Esta é a oportunidade de a transformar nos alicerces de uma nova forma de fazer saúde.

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Especialista em Medicina Geral e Familiar | Specialist in General Practice and Family Medicine

Mestre em Evidência e Decisão em Saúde | Master in Health Evidence and Decision

Pós-Graduado em Alta Direção de Instituições de Saúde | Postgraduate Degree in Healthcare Management

Pós-Graduado em Tratamento de Dor | Postgraduate Degree in Pain Management

Coordenador – Grupo de Estudos de Dor, Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar |

Coordinator – Pain Study Group, Portuguese Association of General Practice and Family Medicine

 

 

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Opinião

7 Dez 2021 - 04:46

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