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Entrevista

Tânia Graça: “Quando te tornas dona do teu prazer, estás mais perto de ser dona da tua vida”

27 Abr 2022 - 09:00

Entrevista

Tânia Graça: “Quando te tornas dona do teu prazer, estás mais perto de ser dona da tua vida”

Quando as amigas se envolviam com um novo parceiro, a primeira pergunta de Tânia Graça após o encontro era se tinham chegado ao orgasmo. Se, por um lado, os temas da sexualidade sempre lhe interessaram; por outro lado, as desigualdades de género revoltam-na desde muito nova. Por isso, e por acreditar que a libertação sexual é um caminho para a libertação feminina, a psicóloga especializou-se em sexologia. Desde 2019, partilha numa página do Instagram com mais de 195 mil seguidores tudo o que sabe sobre sexo, amor e relações. O objetivo? “Libertar vulvas, mulheres e prazer”.

Fala sobre sexualidade numa página com quase 200 mil seguidores, tem um programa “Voz de Cama” numa rádio nacional e foi a cara de uma rubrica televisiva no “5 Para a Meia-Noite” sobre o mesmo tema. O que explica este sucesso?

O principal fator é a escassez de informação nesta área. O sexo, a sexualidade e todos os temas circundantes continuam a ser um tabu, continua a haver uma grande lacuna no que toca a informação sobre estas matérias. Por essa razão, quando aparece alguém, numa plataforma como o Instagram, com formação na área, a trazer informação fidedigna e a responder a perguntas que as pessoas não têm coragem de perguntar a ninguém com receio de parecerem anormais, quem está do outro lado percebe que precisa daquela informação.

Além disso, o interesse das pessoas pelo meu conteúdo explica-se também pelo facto de informar de forma profissional e com seriedade, mas com descontração e leveza, porque acredito que estes temas devem ser tratados com naturalidade. É frequente dizerem-me que tenho um “descomplicómetro”. Por isso, quando me ouvem, mesmo quando falo de temas mais polémicos e complexos, não sentem choque.

E como começou tudo isto?

Sempre tive muito interesse pelos temas das relações e da sexualidade e quando fui estudar psicologia especializei-me numa área ligada à terapia de casal. Além disso, sempre tive muito à vontade com estas questões. Por exemplo, quando as minhas amigas da faculdade tinham um novo envolvimento com alguém, a primeira coisa que perguntava quando elas voltavam do encontro era: “Vieste-te?”. O orgasmo feminino e o prazer da mulher sempre foram questões importantes para mim, ainda que, na altura, não tivesse consciência de que isto se ia tornar naquilo que é hoje.

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“Acredito que o empoderamento sexual é uma das vias mais importantes para lá chegar, porque quando te tornas dona do teu corpo e do teu prazer, estás mais perto de ser dona da tua vida. A libertação sexual é um caminho para a libertação feminina”.

Mais tarde, fui contactando com movimentos feministas, percebendo as desigualdades de género e constatando que a sexualidade é uma das áreas em que as mulheres mais estão reprimidas. Percebi que libertando esta parte das nossas vidas muitas outras se libertam. Durante a infância, assisti a muitas situações de desigualdade de género, de alguns abusos e de imposições de como a mulher e o homem devem ser. Essa experiência de vida semeou em mim a certeza de que nenhuma mulher deve passar por isto e, quando contactei com estes movimentos feministas, descobri que a minha missão de vida é a libertação e o empoderamento das mulheres. Acredito que o empoderamento sexual é uma das vias mais importantes para lá chegar, porque quando te tornas dona do teu corpo e do teu prazer, estás mais perto de ser dona da tua vida. A libertação sexual é um caminho para a libertação feminina.

A pensar nisso, em março de 2019 comecei a contar histórias de mulheres inspiradoras no meu Instagram e a escrever sobre autoestima. Depois, gradualmente, enquanto estudava sexologia, comecei a criar conteúdo sobre sexualidade e o impacto foi extraordinário.

 

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O facto de ter pessoas a ouvi-la e a falar mais abertamente deste assunto com a Tânia significa que o sexo está a deixa de ser um tabu?

Ainda é um grande tabu, há muito caminho a fazer, mas as coisas estão a evoluir. Sei que estou numa bolha, porque quem acompanha o meu trabalho sente-se confortável para fazer perguntas e expor dúvidas. Agora, se essa abertura acontece fora da minha bolha? Mais ou menos. Ainda não estamos no ponto em que eu gostaria que estivéssemos. Por isso, há muito caminho a fazer. E eu cá estarei. Vão ter de levar comigo uns bons aninhos, certamente.

Nesse espaço de confiança que diz ter criado com os seus seguidores, quais são as dúvidas mais frequentes?

A maioria das questões estão ligadas a mitos sobre a sexualidade. Uma das mais frequentes é: “Não consigo ter orgasmo só por penetração, como é que posso ter?”. Há muitas dúvidas relacionadas com a ideia de que a sexualidade deve ser centrada no coito, na penetração, no pénis. No entanto, os estudos mostram que mais de metade das mulheres precisa de estimulação da parte externa do clitóris para chegar ao orgasmo.

Surgem também muitas questões associadas a reações físicas durante o ato sexual e ao medo da perda de controlo, nomeadamente sobre se é normal antes do orgasmo haver uma sensação semelhante à vontade de urinar. Também me perguntam muitas coisas relacionadas com as dinâmicas das relações, nomeadamente sobre como terminar uma relação ou como identificar um comportamento abusivo. As pessoas querem ser mais felizes nas suas relações e as mulheres começam cada vez mais a querer ter prazer.

E estas questões variam muito de acordo com a faixa etária das pessoas?

De acordo com as estatísticas fornecidas pelo Instagram, os meus seguidores têm entre 25 e 45 anos. Até porque as pessoas mais velhas usam menos as redes sociais. Ainda assim, noto alguma diversidade nas questões dos meus seguidores mediante a faixa etária em que se inserem. As raparigas mais jovens costumam fazer perguntas sobre a virgindade e o início da vida sexual. No caso das pessoas mais velhas, as questões estão mais ligadas à menopausa e aos seus efeitos.

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Apesar de o meu público mais jovem já ser adulto, acredito que uma pessoa de 17 ou 18 anos também tem uma maturidade que já lhe permite perceber o meu conteúdo. No entanto, a educação sexual deve ser adequada à faixa etária à qual se destina e eu não tenho controlo sobre quem me vê.

Nesse sentido, qual a sua perspetiva sobre a educação sexual em Portugal?

Não trabalho diretamente com educação sexual infantil e juvenil. No entanto, através do contacto com colegas psicólogos e dos testemunhos das mulheres que acompanho, percebo que, apesar de a educação sexual estar legislada e com uma carga horária definida, estas matérias não são dadas da forma como está definido. Isso acontece porque, por um lado, faltam recursos humanos, no sentido em que se pede, por exemplo, a um professor de matemática de 65 anos que venha lecionar educação sexual. Eu entendo que esta pessoa não se sinta confortável por não ter a formação necessária e por ter uma idade muito distante da dos miúdos com quem está a falar. Esta diferença geracional pode ser muito desconfortável tanto para quem ouve quanto para quem está a lecionar.

Por outro lado, o facto de o tema ainda ser tabu também não ajuda. Creio que os professores, por não estarem à vontade com o assunto, se sintam constrangidos e com receio das reações dos alunos. Se bem que, quando a temática é tratada com seriedade e simultaneamente com descontração, os conteúdos chegam aos miúdos.

Acredito que uma forma de contornar estes problemas seria trazer pessoas de fora – como psicólogos, médicos, enfermeiros – que tenham formação e estejam à vontade com o tema e preparadas para o lecionar. Além disto tudo, é necessário que a educação sexual não esteja exclusivamente centrada nos perigos e seja mais centrada no prazer.

Muitas vezes, nestas aulas só se fala sobre preservativos, infeções sexualmente transmissíveis, gravidez, associando a sexualidade à culpa e ao medo. É fundamental falar dos riscos, mas numa perspetiva de mostrar que o sexo é uma experiência de partilha e de prazer, explicando que pode ser ainda mais incrível se estivermos protegidos destes riscos.

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“Acredito que uma forma de contornar estes problemas seria trazer pessoas de fora – como psicólogos, médicos, enfermeiros – que tenham formação e estejam à vontade com o tema e preparadas para o lecionar. Além disto tudo, é necessário que a educação sexual não esteja exclusivamente centrada nos perigos e seja mais centrada no prazer”.

Depois, é preciso perceber que falar de educação sexual é muito mais do que sobre sexo. É falar sobre orientação sexual, identidade de género, respeito pela diferença, empatia, limites nas relações, etc. Tudo isto são pontos essenciais, porque a sexualidade é essencial para uma vida feliz.

 

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Fala muito de questões como o consentimento, o afeto e o respeito nas relações entre pessoas. Porque é que estes temas são tão importantes e estão tão presentes na sua comunicação?

Por um lado, a importância que dou a estes temas está relacionada com a minha história e com as dinâmicas relacionais que presenciei. A minha experiência mostrou-me o quanto uma relação não saudável pode ser prejudicial para a nossa saúde mental e afetar a nossa liberdade e o nosso bem-estar. Por isso é que falo tanto de igualdade de género.

Muitos dos problemas que existem nas relações residem nas desigualdades, na sociedade machista em que vivemos e na atribuição e imposição de papéis de género. Para mim, falar disto é essencial porque as relações são a base da nossa vida. Nós somos seres relacionais: relações boas vão trazer-nos felicidade e relações más poderão destruir-nos. Portanto, boas relações são tanto o reflexo como o ponto de partida para uma sociedade melhor e com menos abusos e violência.

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Desse ponto de vista, podemos dizer que a igualdade de género também tem impacto positivo na sexualidade? A título de exemplo, numa relação entre um homem e uma mulher, quando as tarefas da casa são divididas, pode haver um efeito benéfico na vida sexual do casal?

Sem dúvida. Há alguma evidência de que mulheres feministas com este tipo de preocupações muito presentes têm mais prazer no sexo. Além disso, há estudos a concluir que uma divisão de tarefas equitativa tem efeitos no desejo sexual da mulher. E é evidente o motivo para tal acontecer. Se uma mulher se sente sobrecarregada e que a outra pessoa se está a aproveitar dela, isso tem implicações nos seus sentimentos. Há um ressentimento e uma raiva gerada por esses comportamentos. Quem é que tem vontade de ter sexo depois de se sentir tratada como uma criada? Fora a sobrecarga mental de ter de pensar sobre a organização da casa. Tudo isso tem de ser dividido.

Cada casal decidirá quem faz o quê, nem todos têm de funcionar da mesma forma, mas é importante que esse equilíbrio exista e que essa gestão prática e mental seja feita em conjunto. Quando há filhos, por exemplo, o pai não deve dar banho só porque a mãe disse que a criança precisava de tomar banho. O pai deve chegar-se à frente e perceber o que precisa de ser feito. Já vi muitos casais com problemas porque se gerou um ressentimento numa das partes por sentir que faz tudo. Isso tem implicações no sexo, na relação com o outro e cria um efeito bola de neve: A pessoa está zangada, não quer envolver-se com a outra e a falta de vontade pode gerar, por sua vez, ainda mais zanga.

“Nós somos seres relacionais relações boas vão trazer-nos felicidade e relações más poderão destruir-nos. Portanto, boas relações são tanto o reflexo como o ponto de partida para uma sociedade melhor e com menos abusos e violência”.

A sua página é direcionada para as mulheres, mas o que é que os homens têm a aprender com o conteúdo que a Tânia produz?

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Na última vez que vi as estatísticas da minha página, 16% dos meus seguidores eram homens. Ainda assim, tenho homens a interagir com o meu conteúdo, a enviar questões para a minha rubrica “Consultório do Amor” e a debater. Acredito que o conhecimento não ocupa lugar e, por exemplo, quando eu falo de prazer feminino, isso também interessa aos homens heterossexuais. Quando falo de comunicação entre um casal, isso interessa às pessoas que fazem parte de um casal.

De qualquer forma, o pouco hate (comentários ofensivos ou desagradáveis) que recebo vem de homens. Isso acontece porque alguns se sentem atacados quando eu digo, por exemplo, que muitos homens construíram carreiras de sucesso em cima de trabalho doméstico invisível e não remunerado das mulheres. Esta postura defensiva vem de um lugar de fragilidade, porque, na verdade, eu não estou a atacar ninguém. Estou a falar de um problema sistémico e muito maior do que nós.

Noutro plano, nota-se também nas suas intervenções um cuidado em criar conteúdo que responda a inquietações de pessoas que não encaixem num molde binário ou nos moldes heteronormativos. Como é que faz para passar a informação da melhor maneira possível, respeitando o lugar de fala destas pessoas?

O meu conteúdo está muito voltado para mulheres cisgénero e heterossexuais. Volta e meia, vou trazendo temas relacionados com a sensibilidade para as causas LGBTI+ e promovo o respeito pela diversidade e pela liberdade de se amar e ter sexo com quem se quer. No entanto, essas não são questões que eu sinta na pele e, por isso, acredito que o lugar de fala deve ser dado a quem de direito.

O que eu faço é convidar pessoas que vivem esta realidade para falarem sobre os seus desafios e inquietações. Num dos confinamentos, convidei várias mulheres com características diferentes (desde a orientação sexual até à cor da pele) para uma série de conversas transmitidas em direto, porque se há alguém melhor para abordar estes temas é quem os domina.

Nesse seguimento, os profissionais de saúde estão preparados para lidar com estas questões que não são necessariamente novas, mas que ainda têm uma série de preconceitos associados?

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Há uma série de profissionais de saúde a fazer um trabalho incrível, tanto nas redes sociais como no mundo offline. No entanto, aquilo que eu conheço não é necessariamente a realidade de todo o país. Sei que há muitos profissionais que não estão à vontade com estes temas, o que até pode não ser problemático desde que haja respeito e não preconceito na sua abordagem.

É legítimo um profissional não se sentir apto a tratar um problema e encaminhar para um colega mais especializado. Não pode é haver julgamento e segregação e isso, por vezes, acontece. Já chegaram até mim testemunhos como o de uma médica que insistiu para que uma mulher lésbica tomasse a pílula, mesmo depois de ela lhe ter explicado que não tinha relações com homens e não corria o risco de engravidar. Isto acontece, mas também quero acreditar que há cada vez mais profissionais habilitados e sensibilizados para estas realidades.

 

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As relações não monogâmicas são também um assunto do qual já falou na sua página de Instagram. Quais são os principais preconceitos que existem sobre estas estruturas relacionais?

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A sociedade construiu-se em cima da monogamia e de uma suposta exclusividade sexual e relacional. Esta estrutura estabeleceu-se quando surgiu a propriedade privada e se passou a querer garantir que “aquele filho é meu”. Foi a partir daí que a monogamia se instalou, mas, por norma, este modo de vida monogâmico só se aplicava à mulher. Se os homens tivessem relações fora do casamento não havia grandes consequências, vivia-se uma estrutura patriarcal. Foi nessa estrutura que apoiámos a nossa autoestima, o nosso sentido de valor próprio. Há uma série de pilares da nossa identidade e da nossa sociedade que estão assentes e desenhados para a monogamia.

“Desconstruir essas ideias é difícil e, para muitas pessoas, revoltante. No entanto, as pessoas deviam meter-se na sua vida: Se não é nas suas casas e nas suas camas que as não monogamias se desenrolam, qual o motivo para se sentirem incomodadas? Porque é que a liberdade do outro as incomoda? Porque é que o modo de vida do outro as incomoda?”

Quando alguém vem questionar essa realidade e falar das suas relações abertas ou poliamorosas, isso choca o mundo, porque as pessoas sentem esta forma alternativa de viver como se fosse uma crítica à sua. E não é. Só que essas estruturas entram em choque com todas estas realidades, inclusive com as questões religiosas e com aquilo que nós definimos como amor romântico. Desconstruir essas ideias é difícil e, para muitas pessoas, revoltante. No entanto, as pessoas deviam meter-se na sua vida: Se não é nas suas casas e nas suas camas que as não monogamias se desenrolam, qual o motivo para se sentirem incomodadas? Porque é que a liberdade do outro as incomoda? Porque é que o modo de vida do outro as incomoda?

Quando falo destes temas faço-o no sentido de apelar ao respeito pela diversidade, pelas novas formas relacionais e para mostrar o que temos a aprender com elas. Devemos interrogar-nos sobre isso, porque o questionamento aproxima-nos da realidade que queremos viver. Eu posso questionar-me e concluir que sou mais feliz na monogamia e está tudo bem, mas as não monogamias também nos ensinam muito sobre o facto de podermos estabelecer regras nas nossas relações, bem como a estabelecer limites. Depois, estas estruturas podem ensinar-nos uma honestidade e um aprofundamento da comunicação que também é muito importante.

Por fim, o que podemos fazer para acabar com os preconceitos e os mitos sobre a sexualidade e as relações?

Desconstruir mitos tem sempre que ver com educação. Quando obtemos informação que está em falta ou que está errada, damos passos em direção à nossa verdade. Discutir mais estes temas, seguir páginas como a minha e outras do género, ler livros, ver filmes sobre estes temas, trazer essas conversas para a mesa e questionarmo-nos sobre os nossos preconceitos é fundamental.

Todos nós temos preconceitos, eu própria os tenho, e eles podem ser arrancados pela raiz se estivermos abertos à discussão e não apenas a defender que a nossa realidade deve ser a realidade de toda a gente. Cada pessoa é livre de viver a sua vida, desde que seja em respeito consigo mesma e com as pessoas com quem se relaciona.

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entrevista | sexualidade

27 Abr 2022 - 09:00

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