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Entrevista

Pedro Xavier: “Não podemos adiar indefinidamente a maternidade”

27 Jul 2022 - 09:00

Entrevista

Pedro Xavier: “Não podemos adiar indefinidamente a maternidade”

A infertilidade afeta cerca de 10% dos casais, mais vai muito além da dificuldade em ter filhos. Causa um sofrimento físico e psicológico muitas vezes vivido em silêncio pelo casal, para quem é muito difícil partilhar com família e amigos a angústia de não conseguir ter filhos. Daí ao isolamento social, aos problemas de relacionamento com os mais próximos, até ao fraco desempenho profissional são etapas de um percurso nem sempre compreendido pela sociedade.

Pedro Xavier, presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução, diz que as dificuldades de acesso aos tratamentos de Procriação Médica Assistida há muito são conhecidas e denunciadas pelos especialistas, mas mostra-se muito cético quanto à melhoria da rapidez de resposta no setor público e à diminuição das listas de espera, que podem chegar aos três anos e meio.

O que o ginecologista e especialista em medicina de reprodução gostava era de ver mudanças na sociedade que permitissem às mulheres, e consequentemente aos casais, não ter de adiar o projeto da maternidade devido à instabilidade laboral ou pelo receio de ficar para trás nas ambições profissionais. Afinal, apesar dos avanços da ciência, a idade da mulher continua a ser determinante para o sucesso da gravidez e dos tratamentos disponíveis.

Quando é que se pode dizer que estamos perante um casal com problemas de infertilidade?

A definição da Organização Mundial de Saúde diz-nos que a infertilidade é uma condição que se pode diagnosticar quando ao fim de 12 meses de tentativas para engravidar, com relações regulares e sem uso de contraceção, um casal não consegue ter uma gravidez com sucesso. Pode ter uma gravidez, mas se não tiver sucesso também entra dentro do conceito de infertilidade.

E é conhecido o número de casais afetado por problemas de infertilidade em Portugal? Qual a prevalência desta condição?

Sabemos que a prevalência global da infertilidade é de cerca de 10 a 15% dos casais em idade reprodutiva e Portugal não foge a essa regra. Há, de facto, uma proporção bastante considerável de casais que vai ter dificuldade em engravidar e muitos deles vão mesmo ter de recorrer a tratamentos de procriação medicamente assistida.

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Esses números globais dizem respeito ao casal, mas existem diferenças na prevalência entre as causas de infertilidade ligadas à mulher e ao homem?

Hoje já não se nota isso. Há uma quase simetria de casos [de infertilidade] entre o homem e a mulher. Há 30 ou 40 anos, quando falávamos em infertilidade, havia uma grande proporção de mulheres que eram afetadas por problemas que comprometiam o sucesso do casal. Hoje em dia é quase 50% de fator masculino e 50% de causas femininas para a infertilidade.

São conhecidos os motivos para essa mudança? Para esse aumento das causas masculinas na infertilidade do casal?

Sem dúvida, porque hoje sabemos que a grande causadora deste aumento da infertilidade masculina tem sido o estilo de vida e os fatores ambientais a que atribuímos o nome científico de disruptores endócrinos. Na prática é o que nos rodeia e tem uma ação nociva sobre o nosso organismo, nomeadamente hábitos comportamentais como o cigarro, o álcool, o excesso de peso, o sedentarismo ou a exposição a substâncias químicas com as quais lidamos quando manipulamos plástico, quando bebemos produtos engarrafados em plástico, quando tocamos em teclados de computador. Tudo isso tem afetado de forma mais acentuada a fertilidade masculina e hoje nota-se um aumento muito considerável das causas masculinas.

A definição da Organização Mundial de Saúde diz-nos que a infertilidade é uma condição que se pode diagnosticar quando ao fim de 12 meses de tentativas para engravidar, com relações regulares e sem uso de contraceção, um casal não consegue ter uma gravidez com sucesso. Pode ter uma gravidez, mas se não tiver sucesso também entra dentro do conceito de infertilidade.

As questões relacionadas com a infertilidade nas mulheres estão mais ligadas à anatomia, a problemas relacionados com o aparelho reprodutor – como a endometriose, a síndrome do ovário poliquístico – e no homem estamos a falar de causas mais ligadas ao estilo de vida?

Diria que o homem tem mais uma ligação a esses fatores, embora existam outras causas, como os fatores de ordem genética, de ordem oncológica ou cirúrgica que podem comprometer a fertilidade masculina.

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Na mulher está classicamente mais associado a problemas na ovulação, de endometriose e de fatores anatómicos como anomalias uterinas, problemas de permeabilidade das trompas uterinas e muitas vezes, e cada vez mais, a fatores relacionados com a idade. É frequente encontrarmos casais que já não têm uma causa específica que explique a infertilidade a não ser a idade.

Esta questão tem vindo a agravar-se e nestes casos afeta mais a mulher que o homem devido à idade do óvulo que, depois dos 35/38 anos, tem um peso significativo na tentativa de engravidar e [no sucesso] dos próprios tratamentos de infertilidade.

Se as questões ligadas ao estilo de vida – a alimentação, o tabagismo, o excesso de peso – que acabam por afetar ambos os géneros também estão ligadas aos problemas de fertilidade, isso significa que podemos, de alguma forma, prevenir a infertilidade alterando o estilo de vida?

Claramente. Não digo evitar e prevenir totalmente, mas podemos diminuir o risco fazendo uma profilaxia ao adotar um estilo de vida mais saudável que, naturalmente, se associa a um melhor comportamento reprodutivo.

Fazemos essa apologia nas campanhas da Sociedade Portuguesa de Medicina de Reprodução, alertamos jovens, que ainda não pensam sequer no seu futuro reprodutivo, para adotarem comportamentos mais saudáveis que, no futuro, lhes podem trazer melhor saúde reprodutiva.

As questões da infertilidade também são associadas a mitos, por exemplo aos métodos contracetivos. Circula a ideia de que com a utilização da contraceção oral a mulher teria mais dificuldade em engravidar no futuro. O que a ciência já mostrou neste campo?

Há muito essa ideia enraizada nas mulheres, de que a contraceção hormonal pode ter um efeito negativo sobre o futuro reprodutivo. Curiosamente, sabemos que é exatamente o contrário: as mulheres que tomam a pílula estão mais protegidas contra o desenvolvimento de algumas doenças, essas sim associadas à infertilidade, como a endometriose. A toma da pílula tem de ser encarada nessa perspetiva, como algo benéfico para a mulher. É exatamente o contrário do que nos perguntam em consulta, se não deviam parar a pílula porque já tomam há algum tempo e quando quiserem engravidar podem ter dificuldade. O que sabemos, e a ciência diz-nos isso, é que a pílula preserva um pouco melhor a saúde do útero e dos ovários. Contudo,  não previne o esgotamento dos ovários associado à idade.

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Outro mito que nos colocam é se, quando fazemos uma estimulação dos ovários, não estarão a gastar óvulos que depois farão falta no futuro. A verdade é que quer a mulher esteja a fazer estimulação dos ovários, quer a mulher esteja a tomar a pílula – que é exatamente o contrário, é inibir o ovário – gasta exatamente o mesmo número de óvulos todos os meses. Portanto, a pílula protege contra as doenças, mas não protege contra o relógio biológico.

Isso é um mito que deve ser muito focado porque muitas mulheres não tomam a pílula com receio de comprometer a fertilidade e, mais uma vez, porque vamos sempre ter ao mesmo sítio que é a idade da mulher.

As mulheres que tomam a pílula estão mais protegidas contra o desenvolvimento de algumas doenças, essas sim associadas à infertilidade, como a endometriose. A toma da pílula tem de ser encarada nessa perspetiva, como algo benéfico para a mulher.

Falando nos tratamentos para a infertilidade, o que existe hoje para ajudar estes casais?

Podemos dizer que temos dois tipos de abordagem do tratamento da mulher com problemas de fertilidade. Uma é a abordagem cirúrgica e outra é a abordagem médica. A abordagem cirúrgica dirige-se, sobretudo, para a resolução de problemas, como os quistos nos ovários ou anomalias anatómicas uterinas, que se podem corrigir por esta via. É uma pequena percentagem dos casos que se podem resolver com cirurgia.

A maior parte dos casais vai necessitar de tratamentos medicamentosos, a chamada abordagem médica, e esses tratamentos podem ser divididos em dois patamares. Temos os chamados tratamentos de primeira linha, que são os tratamentos mais básicos, como a medicação – injetável ou oral – para induzir a ocorrência da ovulação em mulheres que não têm ovulação e nestes casos o casal pode tentar engravidar de forma natural com essa medicação.

Num patamar ligeiramente acima de complexidade existe a inseminação artificial que é um tratamento em que também se induz a ovulação da mulher e depois faz-se a colocação de espermatozoides – seja de um companheiro, seja de um banco de gâmetas no caso de a mulher não ter um companheiro masculino – dentro da cavidade uterina por um método muito simples, fazendo coincidir o timing da ovulação com a colocação de espermatozoides no útero. Este tratamento de inseminação artificial é bastante simples e por não ser muito complexo, nem ter uma intervenção muito ampla, as taxas de sucesso são relativamente baixas, à roda de 10%, 12% de possibilidade de engravidar por este processo.

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Depois vêm os tratamentos de segunda linha, que são sobretudo a fertilização in vitro (FIV) com as suas variantes. A FIV é um tratamento bastante mais complexo que implica estimular os ovários com doses de fármacos mais elevadas para produzir uma maior quantidade de óvulos. Depois, geralmente ao fim de 10, 12 dias de medicação, faz-se uma colheita desses óvulos por via vaginal, com sedação para a mulher não sentir dor, e esses óvulos são fertilizados com os espermatozoides do companheiro ou do banco de gâmetas. Esta fertilização pode ser feita por duas técnicas. Numa apenas colocamos os espermatozoides e os ovócitos numa incubadora, deixamos que eles interajam e ao fim de 16/18 horas faz-se uma avaliação dessa interação de uma forma mais natural dentro desta artificialidade.

A outra técnica, que surgiu já nos anos 90 do século passado, é a chamada microinjeção intracitoplasmática de espermatozoides, ou ICSI. A ICSI é em tudo igual à FIV, o que muda é que o espermatozoide é injetado no interior do ovócito, sendo um método usado sobretudo em casos de problemas masculinos mais graves, como o homem não produzir uma grande quantidade de espermatozoides ou os espermatozoides serem muito lentos.

Quer uma técnica, quer outra são amplamente utilizadas, são mesmo as mais utilizadas, e as taxas de sucesso são ligeiramente superiores na FIV, sobretudo porque a ICSI é utilizada quando há, para além de problemas femininos, problemas masculinos e então o prognóstico é um pouco pior. No caso da ICSI as taxas de sucesso andam na ordem dos 30% e na FIV rondam os 40%.

Com o desenvolvimento científico, há margem para o crescimento das taxas de sucesso das várias técnicas de PMA usadas?

Há sem dúvida e a evolução tem sido nesse sentido. O que hoje nos parece uma taxa de sucesso bastante modesta, que ronda os 40%, são números obtidos cada vez mais frequentemente com transferências para o útero de apenas um embrião.

Estas taxas de sucesso, que na verdade não aumentaram de forma tão espetacular como poderia imaginar-se nos últimos 20 ou 30 anos, refletem uma política muito mais conservadora no que diz respeito à transferência de embriões, porque os especialistas em reprodução perceberam que estavam a criar um problema aos casais e às crianças que eram geradas por estes tratamentos porque tínhamos taxas de gémeos, às vezes de gravidezes triplas, muito altas. Chegámos a ter 40% dos tratamentos a resultarem em gravidezes gemelares e em cerca de 10% dos casos trigemelares.

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O grande avanço que temos é uma ligeira melhoria na taxa de sucesso, mas uma redução muito significativa no número de embriões transferidos e, como tal, também das taxas de gémeos que em Portugal já são hoje ligeiramente abaixo dos 10%.

Essa margem de evolução nota-se por este facto. Se estivéssemos a transferir embriões em número igual ao que fazíamos há três décadas seguramente que a taxa de sucesso dos tratamentos andaria nos 60% ou mais, só que com um problema muito complicado que eram as gravidezes gemelares com todos os riscos associados, nomeadamente, a prematuridade e outras complicações.

Os especialistas em reprodução perceberam que estavam a criar um problema aos casais e às crianças que eram geradas por estes tratamentos porque tínhamos taxas de gémeos, às vezes de gravidezes triplas, muito altas. Chegámos a ter 40% dos tratamentos a resultarem em gravidezes gemelares e em cerca de 10% dos casos trigemelares.

O avanço na eficácia dos tratamentos é lento. Vamos tentando aprimorar os tratamentos e introduzir estratégias que têm aumentado a eficácia, mas a conquista é dura. O que se espera é que, com as estratégias que estão a ser cada vez mais utilizadas, nos próximos 30 anos se possa chegar a taxas de sucesso na ordem dos 60%. Mas há esta ideia de que os tratamentos de fertilidade têm taxas de sucesso mais altas do que na realidade têm, pois muitos casais acabam por conseguir uma gravidez porque repetem os tratamentos. Ou seja, cada tentativa pode oferecer 30% ou 40% de probabilidade de engravidar, mas se fizerem mais do que uma tentativa há aquilo a que chamamos probabilidade cumulativa que pode, em alguns casos, chegar aos 70% ou 80% de probabilidade de engravidar se fizer vários tratamentos.

Falou há pouco na idade da mulher como um fator determinante na fertilidade. Que peso tem o adiamento da parentalidade nos problemas de infertilidade dos casais?

A taxa de sucesso [para uma gravidez] depende muito das células e a qualidade das células está intimamente ligada à idade. As nossas células vão envelhecendo com o passar do tempo o que se aplica a todas as células do nosso organismo. Algumas têm uma pool de renovação que permite manterem-se funcionantes por muitos anos e em boas condições.

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O problema é que o ovário tem uma particularidade: as células [do ovário], os ovócitos, não têm renovação celular. A mulher nasce com um determinado património que vai gastando ao longo da vida. É como se fosse um mealheiro do qual só tira moedas e nunca repõe. O que vai acontecer em determinada altura da vida, sobretudo depois dos 35, e mais ainda dos 38 anos, é que esse mealheiro já tem poucas moedas e como a natureza faz a sua seleção segundo a lei do mais forte, ou seja, os melhores ovócitos gastam-se no pico da idade reprodutiva, que é pelos 23, 24 anos, e depois vai sendo sempre selecionada a melhor pool de células para cada ciclo menstrual.

Depois nessa idade [38 anos], o número de ovócitos é claramente baixo e a qualidade também é baixa porque foram ovócitos que foram ficando para trás, porque não foram escolhidos, e ao mesmo tempo vão sendo expostos durante mais anos aos tais fatores ambientais que degradam as células. Assim sendo, estão criadas as condições para que uma mulher com 42,44 anos já sinta muita dificuldade em engravidar mesmo que não tenha qualquer problema reprodutivo, tem é o problema do envelhecimento das suas células.

O problema é que o ovário tem uma particularidade: as células [do ovário], os ovócitos, não têm renovação celular. A mulher nasce com um determinado património que vai gastando ao longo da vida. É como se fosse um mealheiro do qual só tira moedas e nunca repõe.

No homem este processo nota-se mais tardiamente, precisamente por haver uma renovação dos espermatozoides que estão sempre a ser substituídos, têm um tempo de vida médio de 90 a 120 dias. Mesmo assim, depois dos 50 anos os homens têm também uma quebra acentuada da sua fertilidade e um aumento do risco de alterações genéticas [do embrião] associadas à fertilidade masculina em idade tardia.

Existe alguma linha de investigação científica para aumentar a capacidade desse mealheiro da mulher, usando a sua expressão, e preservar a qualidade de ovócitos durante mais tempo?

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Existem várias linhas de investigação que se preocupam com este tema e têm sempre em vista a possibilidade de a mulher, em idades mais tardias, usar células com melhor qualidade.

Uma das áreas de investigação, que já está em prática, é a congelação de ovócitos em idades mais jovens para serem usados em idades mais tardias. Apesar de isso já ser uma realidade, as taxas de sucesso ainda não são tão altas quanto seria desejável. Mesmo assim, uma mulher que congele ovócitos aos 32 ou 34 anos e os use aos 42 ou 44 anos tem uma probabilidade de engravidar substancialmente maior se usar os ovócitos que congelou do que se usar os ovócitos que tem disponíveis nessa idade. É certo que foi uma linha de investigação que deu resultados e que vai continuar a ser aprimorada para tentar melhorar essas taxas de sucesso.

Também existem linhas de investigação muito primordiais, que ainda estão numa fase muito inicial, que tentam utilizar as células estaminais, mais indiferenciadas, diferenciando-as em células germinativas, ou seja, em espermatozoides e ovócitos. É um grande desafio, porque essas células têm particularidades muito específicas e é muito difícil. Hoje já se consegue diferenciar células estaminais colhidas do cordão umbilical no momento do nascimento em células da pele, ou do tecido ósseo, mas é muito difícil diferenciá-las em células germinativas. Será por esse caminho que, provavelmente, se irá avançar no futuro.

Outra área será a manipulação genética no sentido de corrigir erros das células, porque os erros são sobretudo genéticos, mas essa engenharia genética ainda está longe. Hoje já se fazem estudos genéticos para eliminar embriões que tenham anomalias grosseiras nos cromossomas, mas não se consegue resolver o problema já existente, ou seja, só se consegue diagnosticar e não tratar essa patologia no embrião. No futuro poderá ser uma linha de investigação, por agora é ficção.

Falou da recolha de ovócitos, que já se faz em Portugal no setor público em mulheres que passam por uma doença oncológica. De outra forma, só uma mulher com capacidade financeira pode fazer essa preservação no privado. Considera que esta técnica poderia ser mais acessível no setor público para que as mulheres possam engravidar mais tarde?

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É um problema muito complexo. A primeira resposta, e mais intuitiva, seria sim, claramente deveríamos promover esse tipo de abordagem e preservar a fertilidade da mulher que queira adiar a maternidade até os projetos dela estarem concretizados.

O problema é que essa estratégia não garante uma gravidez quando forem usados os ovócitos e a gravidez em idades mais avançadas, aos 48 ou 49 anos, mesmo com ovócitos preservados em idades mais jovens, tem um risco acrescido de complicações quer na mulher, quer no feto. Não podemos adiar indefinidamente a maternidade. Temos é que, se calhar, tentar mudar um pouco a mentalidade na sociedade ocidental, que é mais vítima dessa adiar permanente da parentalidade. Temos de criar condições efetivas de apoio a uma maternidade em idades mais jovens, garantindo que as mulheres têm as mesmas oportunidades de carreira profissional, porque esse apoio será um investimento até do ponto de vista socioeconómico para uma sociedade, para um país.

O problema é que essa estratégia não garante uma gravidez quando forem usados os ovócitos e a gravidez em idades mais avançadas, aos 48 ou 49 anos, mesmo com ovócitos preservados em idades mais jovens, tem um risco acrescido de complicações quer na mulher, quer no feto. Não podemos a adiar indefinidamente a maternidade.

Por outro lado, se vivemos numa realidade, em Portugal e não só, em que a acessibilidade aos procedimentos de PMA é muito baixa – porque há longas listas de espera nos sistemas públicos de saúde, os tratamentos nos privados são muito caros e nem todos os casais os podem fazer – este tipo de abordagem por razões não médicas de adiamento maternidade dificilmente ira ser uma opção de acessibilidade fácil. Afinal, o Estado continua a debater-se com as listas de espera para tratar os casais com infertilidade e mesmo para esses não tem uma resposta adequada. Numa perspetiva muito pragmática não vejo esta via a ser aplicada em larga escala.

A recolha de ovócitos tem vindo a aumentar, sem dúvida, há cada vez mais mulheres a recorrer a este tipo de tratamento porque vão sendo informadas sobre esta possibilidade em idades em que é eficácia da congelação é maior, mas muitas mulheres deparam-se com o dilema de gostarem de o fazer, mas não terem dinheiro e o Estado não comparticipa pelo sistema público.

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O problema das listas de espera para acesso aos tratamentos de fertilidade é uma questão há muito assumida pelos intervenientes na PMA no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Os casais continuam a ter de esperar bastante tempo para aceder aos tratamentos e a estarem limitados a um determinado número de tratamentos?

O que está previsto é o Estado comparticipar até três tratamentos de primeira linha e até três tratamentos de segunda linha. Na prática, um casal que precise de fazer FIV tem três tentativas. O problema é que a partir dos 40 anos [da mulher] o Estado já não dá resposta para esses tratamentos de segunda linha. Uma mulher com 40 anos e uns meses ou 41 anos já não pode fazer uma FIV no serviço público, tem de recorrer aos privados.

Mesmo com esta limitação, as listas de espera são de cerca de ano e meio para um tratamento convencional e, atualmente, de cerca de três anos e meio quando é necessário recorrer a doação de ovócitos ou espermatozoides. Estamos a falar de um tempo espera para tratamentos que têm na base do seu sucesso a ligação à idade da mulher e depois estamos a dizer a estes casais que vão ter de esperar um ano e meio ou três anos e meio, no caso das doações de gâmetas quer masculinos, quer femininos.

É um problema que se arrasta há muitos anos e que se agravou com a pandemia. A espera era de cerca de um ano e passou para cerca de ano e meio e ainda não houve recuperação passados estes quase dois anos da fase mais aguda da pandemia, quando houve uma paragem completa da atividade dos centros [de PMA] em 2020.

E não vejo muitas perspectivas de isto melhorar. Trabalho em PMA há mais de 20 anos e sempre houve iniciativas desgarradas, a criação de grupos de trabalho, tentativas de criar condições que esbarram sempre na questão crítica que é o financiamento. É preciso dinheiro, não basta boas intenções. Podemos ter leis a dizer que os casais podem fazer seis tratamentos até aos 45 anos, mas se não houver equipas, equipamentos e instalações para fazer os tratamentos, na prática os casais conseguem fazer um ou dois tratamentos e não muito mais do que isso.

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O problema reside numa carência de meios tanto físicos, como humanos? Há poucas equipas no SNS dedicadas a esta área?

Esse é o problema crítico. Nesta altura, as pessoas acordaram para um problema que existe há muitos anos que é o facto de o SNS trabalhar no limite do potencial com os recursos que tem. Temos vindo a perceber que as condições oferecidas ao pessoal – não só aos médicos, mas também aos enfermeiros, aos embriologistas a todos os elementos necessários para formar a equipa de reprodução – não são atrativas e as pessoas são humanas, procuram aquilo que é mais adequado para as suas ambições.

O Estado tem vindo a perder capacidade de resposta apesar do aumento das listas e dos pedidos de tratamento, porque não cria condições para que se dê a volta a esse problema. E não se vislumbra uma solução, porque isso implica investimento.

É um problema que se arrasta há muitos anos e que se agravou com a pandemia. A espera era de cerca de um ano e passou para cerca de ano e meio e ainda não houve recuperação passados estes quase dois anos da fase mais aguda da pandemia, quando houve uma paragem completa da atividade dos centros [de PMA] em 2020.

Infelizmente, os nossos políticos não veem a medicina de reprodução como uma área prioritária, o que é um erro, porque é um investimento não apenas na saúde do casal, mas também um investimento na sociedade ao criar mais nascimentos.

Nomeadamente para sustentabilidade da sociedade, pois temos uma pirâmide etária cada vez mais envelhecida. Apostar na PMA teria vantagens económicas para a segurança social, por exemplo?

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Existem estudos, feitos por economistas na área da saúde, a mostrar que o investimento na medicina da reprodução seria um ótimo investimento em termos de resultados económicos, já não estamos a falar apenas na saúde.

Só que esses resultados surgem mais de 20 anos depois do investimento feito, porque, entretanto, a criança tem de nascer, tem de ir para a escola, fazer o seu percurso [académico] e depois entrar no mercado de trabalho. Só aí é que vai começar a contribuir para a sociedade, mas depois vai contribuir durante 40 anos.

O retorno desse investimento é muitíssimo grande, mas é um retorno muito tardio e os políticos pensam, infelizmente, num prazo mais curto.

Todo o processo de tratamento da infertilidade é profundamente desgastante para o casal, em termos emocionais e psicológicos. Consegue medir-se esse tipo de consequências mais subjetivas na vida das pessoas e da sociedade?

Causa imenso sofrimento e muita instabilidade emocional no casal, no seu relacionamento com a família e com os amigos. Muitas vezes, esses casais isolam-se, deixam de conviver com os amigos que estão a ter filhos porque não conseguem conviver com essa realidade. Não é fácil ver todos os amigos a concretizar o sonho de ter filhos e eles não. Esse isolamento acaba por ter imensas complicações, problemas depressivos, problemas de medicalização por causa da saúde mental.

É por isso que hoje todos os centros de PMA, mesmo os públicos, estão dotados de psicólogos para dar apoio a estes casais. Infelizmente é apenas uma pequena ajuda, porque a grande ajuda seria proporcionar a esses casais a possibilidade de fazer tratamentos e, nos casos em que fosse possível, ter sucesso e concretizar o sonho de ter um filho.

É um problema com um impacto social enorme e muitas vezes escondido, porque os casais sofrem em silêncio. Sem conhecer a história clínica, não conseguimos perceber porque é que o rendimento de alguém no trabalho não é bom, porque é que as pessoas faltam, porque andam tristes, porque não se relacionam de forma fácil com colegas de trabalho ou familiares. Por trás destas situações estão muitas vezes estas questões da infertilidade que não são fáceis de partilhar. Ninguém anda com um cartaz a dizer que tem esse tipo de problema.

Para alterar o cenário que descreveu é necessária uma mudança de paradigma da forma como a sociedade olha para o problema da infertilidade e para a valorização da parentalidade?

Isso só se faz com uma mudança radical de mentalidade quer a nível individual, quer da sociedade. Muitas vezes sabemos que as pessoas até tem uma opinião de proteção e promoção da maternidade, mas depois, na prática, não acontece nada porque no mercado de trabalho as regras são muito cruéis. Uma mulher que vai engravidar tem logo a carreira comprometida, vai ser ultrapassada pelas colegas, sobretudo pelos homens que não têm esta questão da maternidade e da ausência por muitos meses.

É um problema com um impacto social enorme e muitas vezes escondido, porque os casais sofrem em silêncio. Sem conhecer a história clínica, não conseguimos perceber porque é que o rendimento de alguém no trabalho não é bom, porque é que as pessoas faltam, porque andam tristes, porque não se relacionam de forma fácil com colegas de trabalho ou familiares.

Isto é um problema que está dentro da cabeça das pessoas, mas na prática ninguém toma atitudes, como se vê a acontecer nos países nórdicos. Há uns anos, a Suécia tinha um problema de natalidade que ultrapassou, em grande parte, com medidas de apoio que criaram condições para que as mulheres pudessem estar a acompanhar os filhos durante mais tempo, garantindo que a carreira não fica comprometida com a ausência por questões ligadas à maternidade.

Isso implica uma mudança de mentalidade, não só de quem vai engravidar, como também de quem lida diariamente com as grávidas, com os casais que pretendem realizar esse sonho. E falamos nesse sonho, mas ter um filho não devia apenar ser um sonho devia ser um desígnio porque a sociedade só se vai manter se nos continuarmos a reproduzir e parece que esquecemos isso. Os valores da sociedade moderna estão muito longe dessas preocupações e temo que quando acordarmos possa ser já bastante tarde.

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27 Jul 2022 - 09:00

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