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Entrevista

Obesidade. Uma doença bem mais complexa do que “coma menos e ande mais”

31 Mar 2022 - 11:00

Entrevista

Obesidade. Uma doença bem mais complexa do que “coma menos e ande mais”

Ainda antes da Covid-19, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a obesidade como a “epidemia do século XXI”. Apesar disso, continuam a ser vários os obstáculos e as carências no que diz respeito ao acesso ao seu tratamento atempado, além do estigma associado ao excesso de peso. Em entrevista com o Viral, a presidente da Sociedade Portuguesa para o Estudo da Obesidade (SPEO), Paula Freitas, destapou o véu a estas questões, desmistificando mitos e conceitos desta doença que afeta 1,5 milhões de portugueses.

Doença crónica e multifatorial, a obesidade está associada a mais de 200 problemas de saúde, entre os quais 11 a 13 tipos de cancro, sendo a segunda principal causa de morte no mundo, de acordo com dados da OMS. Em Portugal, o último Inquérito Alimentar Nacional e de Atividade Física (2015-2016) revela que a sua prevalência ronda os 22,3%, verificando-se uma tendência crescente à medida que a população envelhece. O mesmo acontece na pré-obesidade e excesso de peso, cujo valor nacional alcança os 34,8%. Dados do Inquérito Nacional de Saúde referentes a 2019 indicam ainda que “mais de metade da população com 18 ou mais anos [tem] excesso de peso (36,6%) ou obesidade (16,9%)”, o que perfaz um total de 53,6% de portugueses adultos com excesso de peso.

Tratando-se uma patologia que pode afetar todos os sistemas do organismo e cuja ligação a riscos metabólicos, a doenças mecânicas e a doenças mentais está descrita na literatura, a médica do Serviço de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo do Centro Hospitalar Universitário São João (CHUSJ) salienta que “todas as especialidades têm um papel no tratamento da obesidade”.

Dados do Inquérito Nacional de Saúde referentes a 2019 indicam ainda que “mais de metade da população com 18 ou mais anos [tem] excesso de peso (36,6%) ou obesidade (16,9%)”, o que perfaz um total de 53,6% de portugueses adultos com excesso de peso.

“A obesidade, por todos os fatores que lhe estão associados, não é apenas da responsabilidade individual; é também um grande e grave problema de saúde pública. Temos de mobilizar os recursos para garantir uma formação especializada dos profissionais de saúde, porque esta doença é muito mais do que ‘coma menos e ande mais’”, alerta a especialista, sublinhando não ser por acaso que a obesidade e o excesso de peso são mais prevalentes nas camadas mais desfavorecidas da sociedade.

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A presidente da SPEO prossegue: “A maior parte das pessoas tem uma obesidade exógena, ou seja, não se deve a uma doença endócrina, nem a uma causa genética. Temos de olhar para como as sociedades estão construídas, em que as pessoas praticamente não despendem energia para se deslocarem”, o que, aliado à indústria alimentar, à globalização e à influência da publicidade, se traduz na receita perfeita para um aumento crescente de peso – com todas as suas consequências.

“A obesidade, por todos os fatores que lhe estão associados, não é apenas da responsabilidade individual; é também um grande e grave problema de saúde pública. Temos de mobilizar os recursos para garantir uma formação especializada dos profissionais de saúde, porque esta doença é muito mais do que ‘coma menos e ande mais’”.

A pandemia da Covid-19 parece ter intensificado todos estes fatores, tendo em conta os sucessivos confinamentos e as alterações no dia a dia impostas pelas medidas de contenção do vírus. Segundo o estudo “REACT-COVID – Inquérito sobre alimentação e atividade física em contexto de contenção social”, levado a cabo pelo Programa Nacional de Promoção da Alimentação Saudável e pelo Programa Nacional para a Promoção da Atividade Física da Direção-Geral da Saúde (DGS), “quase metade da população inquirida (45,1%) reportou ter mudado os seus hábitos alimentares durante este período, e 41,8% tem a perceção de que mudou para pior”.

A alteração no horário de trabalho (17,6%) e no modelo de compras dos alimentos (34,3%) são duas das razões que explicam esta tendência, além do stress vivido (18,6%), mudanças no apetite (19,3%) e a situação económica (10,3%). Na verdade, o relatório revela que “um em cada três portugueses (33,2%) manifestou preocupação quanto a uma possível dificuldade no acesso aos alimentos e 8,0% indicou mesmo ter dificuldades económicas no acesso a alimentos”. Ainda que haja uma tendência para o aumento do consumo de fruta (29,7%) e de hortícolas (21%), o recurso a refeições pré-preparadas (40,7%) ou take-away (43,8%) e a snacks doces (30,9%), aliados ao sedentarismo, “pode explicar a perceção de peso aumentado durante este período, reportado por 26,4% da população”, indica o estudo.

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Foi por uma “resposta holística e equitativa contra a obesidade” que a SPEO e a Associação de Doentes Obesos e Ex-Obesos de Portugal (ADEXO) apresentaram a plataforma “Recalibrar a balança”, no Dia Mundial da Obesidade 2021, assinalado a 4 de março. O documento de consenso entre as entidades elenca “uma série de medidas de implementação urgente”, entre as quais uma visão holística no tratamento da obesidade, a formação especializada dos profissionais de saúde, a criação de consultas de obesidade nos cuidados de saúde primários, a comparticipação dos fármacos e, por fim, o combate ao estigma e à discriminação.

Sobre este último ponto, a médica endocrinologista refere que “o estigma afeta as pessoas de uma forma transversal, e não é por acaso que as pessoas com obesidade apresentam mais estados depressivos”. Desde as suas relações interpessoais, à penalização no acesso a seguros de vida, as pessoas com obesidade são, muitas vezes, “vistas como menos capazes e preguiçosas”. É, por isso, “necessário desconstruir o estigma e lutar pelo tratamento, porque, apesar de a doença ser muito prevalente, ela não é a norma”, reforça.

“O estigma afeta as pessoas de uma forma transversal, e não é por acaso que as pessoas com obesidade apresentam mais estados depressivos”. Desde as suas relações interpessoais, à penalização no acesso a seguros de vida, as pessoas com obesidade são, muitas vezes, “vistas como menos capazes e preguiçosas”.

Para Paula Freitas, a grande barreira ao tratamento farmacológico são os custos associados, ainda que a dieta, o exercício físico e a modificação comportamental sejam a base da terapêutica. A especialista adianta que “a dieta não é algo restritivo ou punitivo; dieta significa ‘deve incluir equilibradamente todos os alimentos’”. No entanto, continua, “as pessoas não percebem que a obesidade é uma doença crónica, e têm ideias fantasiosas de que podem continuar a ter os mesmos comportamentos, como se fossem tomar uma pílula milagrosa”. A propósito, a médica é clara no que toca os produtos de venda livre e drenantes de gordura: “Não funcionam. Temos de desmistificar estes conceitos, para que as pessoas não embarquem em soluções miraculosas”.

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Neste sentido, a prevenção passa ainda por “fazer educação para a saúde desde a pré-primária”, assim como pelo estabelecimento de “medidas de atividade física e de combate ao sedentarismo”. A presidente da SPEO considera também importante despertar a atenção do poder político, já que nos arriscamos a ter “uma sociedade muito doente, sem qualidade de vida, e que não vai ser produtiva, porque as complicações vão surgir precocemente e as pessoas vão morrer muito mais cedo”.

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Obesidade | Peso

31 Mar 2022 - 11:00

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