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Entrevista

Marine Antunes: “Fiquei muito ofendida que o cancro me tivesse tentado matar”

20 Jul 2022 - 09:00

Entrevista

Marine Antunes: “Fiquei muito ofendida que o cancro me tivesse tentado matar”

Aos 13 anos, Marine Antunes recebeu o diagnóstico de cancro, mas foi o Linfoma Não Hodgkin que teve de lidar com uma miúda bem disposta, de uma teimosia absolutamente inflexível e com a certeza pueril de que nada de mal lhe ia acontecer. Resumido assim, até parece que foi fácil. Não foi. Hoje, aos 32 anos, reconhece que o humor foi uma capa que usou muitas vezes enquanto esteve doente para não deixar transparecer a vulnerabilidade normal de quem tem de lidar com um linfoma que lhe quis “tirar o tapete” numa idade tão jovem. Mas tratada a doença, e superada a fase “insuportável” da adolescência vivida a par com o pós-cancro, decidiu que seria do humor que queria viver.

Há quase 10 anos criou um blogue onde começou a escrever sobre os momentos que viveu num tom humorístico e os primeiros seguidores foram os doentes, que agradeciam o olhar desempoeirado sobre os dias de quem está a lidar com uma doença oncológica. Assim nasceu o projeto “Cancro com Humor” que, além de alimentar as redes sociais, já virou livro – mais precisamente quatro livros, o mais recente, “Manual para Descomplicar o Cancro”, chegou aos escaparates em abril passado – e tem percorrido o país em palestras motivacionais, conferências e em momentos de stand-up comedy para os mais variados públicos.

Marine Antunes diz que vai continuar a contar sua história enquanto lhe fizer sentido e existirem pessoas que podem colher da sua experiência algum conforto. Até porque continua a acreditar que é possível ser feliz no caos.

Ao fim de quase 10 anos do projeto “Cancro com Humor” e de terem passado quase 20 desde que foi diagnosticada com cancro, ainda não se cansou de contar a sua história?

Fiz essa pergunta a mim mesma, até quando isto ia fazer sentido. Criei este projeto sem pretensão de futuro e depois ele foi crescendo e eu também fui crescendo com o projeto. Prometi que manteria o projeto até que fizesse sentido para mim e tem continuando a fazer, ou até faz mais sentido ainda. É incrível como uma história comum a tanta gente, o cancro é uma realidade tão presente na nossa vida, nunca se esgota e há sempre alguém com quem vou partilhar a minha história que se identifica e que se vai sentir um pouco mais acompanhado. Tem sido essa a minha missão e o meu objetivo.

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A verdade é que eu também tenho crescido e isso faz com que passe a ver determinadas coisas de outra maneira. Mesmo que a história não mude, nós mudamos e a forma como olhamos para as coisas na nossa vida também muda. Por exemplo, no meu livro “Cancro com Humor 2” contradigo o que disse no livro “Cancro com Humor 1”, porque antes dizia “o meu cancro” e agora sou incapaz de dizer isso, de ter este sentimento de pertença.

Nunca me canso de contar a minha história porque eu não sou sempre a mesma e enquanto existir esta doença vai ser sempre preciso e enquanto achar que faz sentido, vou continuar. Mesmo que faça uma palestra na segunda-feira e outra na terça-feira nunca é igual, porque não sou a mesma pessoa, não estou com o mesmo estado de espírito, as pessoas não são as mesmas e é isso que torna único esse momento da partilha.

No projeto não falo só de cancro, as pessoas acabam por acompanhar a minha história, sinto que se identificam, que me conhecem e é muito bonito. Acompanharam-me quando namorava com o meu carequinha [namorado que também teve cancro], quando ele faleceu, quando me voltei a apaixonar. Este acompanhamento da minha vida tem dado às pessoas que me seguem quase que uma esperança, “olhem a miúda a sobreviver”. É como se fizessem parte da família.

Foi diagnosticada com um Linfoma Não Hodgkin aos 13 anos, pegando no título do seu livro mais recente, começou logo nessa altura a descomplicar o cancro? É possível fazer isso sendo tão jovem?

Inacreditavelmente, sim. Mas é preciso perceber o meu contexto familiar, porque somos muito as pessoas que nos rodeiam e não me canso de falar da bênção de ter a família que tenho. Já era uma miúda muito feliz, a minha família tem um sentido de humor muito apurado e o humor é algo que se pode partilhar numa família, é algo que se ensina e que se aprende.

Conto sempre a mesma história para perceberem que o humor é algo que se pode transmitir e pode ajudar a descomplicar. Antes de ser diagnosticada com cancro, o meu pai ficou desempregado, ele é pedreiro e a minha mãe é empregada de balcão, somos três filhas e o desemprego é sempre catastrófico numa família. Vivíamos com algumas dificuldades e a minha mãe, ao contar a novidade ao jantar, viu que eu e as minhas irmãs ficámos apreensivas. Ao ver a nossa reação de medo disse com o ar mais descontraído do mundo “não estou a perceber porque estão com essas caras tão tensas, então não estão sempre a dizer que querem emagrecer, estamos a fazer-vos um favor, acabou-se a carne”. Rimo-nos que nem pedidas.

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Naquele momento ensinou-me a premissa que está agora no meu livro: nós não podemos decidir aquilo que nos acontece, mas podemos decidir como reagir àquilo que nos acontece. Isto ensina-se. Aquele momento acabou por ser leve e o humor faz isso, esvazia a tensão e rimo-nos.

Quando veio o diagnóstico já tinha esta base. A minha mãe disse logo “nesta casa ninguém morre de cancro”. Foi a esta praticidade da vida que trago do campo e dos meus pais que me agarrei, mas tinha 13 anos, uma grande ignorância em relação ao tema e fui aprendendo aos poucos. Era tão medricas, tinha medo de tudo e no meu primeiro dia de internamento no hospital de Coimbra, a senhora ao meu lado no internamento faleceu durante a noite e eu assisti a tudo. Percebi que não ia sobreviver se estivesse a chorar em posição fetal. Foi uma questão de sobrevivência. Estava em Coimbra, uma cidade que não conhecia, num quatro de três camas com pessoas doentes e a chorar ou me ria daquilo ou morria ali.

Quando veio o diagnóstico já tinha esta base. A minha mãe disse logo “nesta casa ninguém morre de cancro”. Foi a esta praticidade da vida que trago do campo e dos meus pais que me agarrei, mas tinha 13 anos, uma grande ignorância em relação ao tema e fui aprendendo aos poucos.

Mas era uma adolescente a lidar com uma doença grave e também com as alterações físicas, como a perda de cabelo, das sobrancelhas, decorrentes da doença. Nem isso abalou a boa disposição?

Atenção que não quero passar a imagem da positividade tóxica, de que foi tudo muito fácil, porque não foi. Permito-me a que haja maus momentos, chorei muito, mas não me deixei ficar aí.

Nunca me revoltei, nunca me zanguei e nunca pensei que não fosse sobreviver. É uma assertividade louca da pessoa quando está doente, não se pode dar ao luxo de duvidar, e não fraquejei nisso. Eu queria tanto estar cá, olhava para o meu pai e pensava que não lhe podia faltar. Aquela coisa de aguentar também pelos outros. Posso dizer que fui muito corajosa enquanto tive cancro, mas foi muito duro o meu pós-cancro.

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Porque foi mais duro o pós-cancro?

Porque já não estava em modo de sobrevivência. Primeiro estamos com o alerta de perigo ligado, levamos tudo à frente, depois relaxamos e aí dói o corpo todo. Foi horrível o meu pós-cancro porque senti que ninguém me compreendia. Durante a doença não me tinha queixado, guardei tudo, o que queria era sobreviver. No fim, senti que tinha uma maturidade com mais 10 anos em cima [do que a idade real], voltei para a escola e já não me identificava com ninguém, senti que não pertencia a lado nenhum.

Aí sim, senti-me revoltada, muito zangada e os meus pais decidiram pagar a quem me aturasse, porque eu estava insuportável, e então fui seguida por uma psicóloga. Neste livro escrevi uma cara aberta à minha psicóloga, foi maravilhoso. A princípio, odiei ir à psicóloga e depois foi extraordinário porque não tinha de fingir, não tinha de ser a supermulher, não tinha de ser corajosa e foi ótimo.

No fundo, o humor foi uma ajuda no momento de doença aguda, mas depois caiu em si e permitiu-se ter medo, ficar vulnerável?

E perceber que vulnerabilidade não é fraqueza, é a palavra-chave. Nessa altura fiz as pazes com o humor ao reconhecer que não queria que o humor fosse um escudo, porque isso não me serve. Há pessoas que, mesmo sem doença, usam o humor como escudo, não se consegue chegar a elas porque estão sempre com a piada pronta. Eu mudei isso, o humor não é um escudo, é uma forma de estar na vida e hoje tanto choro, como rio.

O humor não pode ser a cortina que tapa a verdade. Naquele momento serviu-me para isso, porque não podia estar 24 horas a chorar, ia ficar com uma grande de dor de cabeça, se no outro dia ia fazer quimioterapia. Eu tinha de estar bem. Foi uma questão prática. A minha médica na primeira consulta disse-me tinha de ganhar peso e eu não consigo comer se estou triste, por isso precisava de estar alegre.

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Como é que um doente oncológico se pode permitir ser ajudado?

Eu não o soube fazer. Hoje não seria a mesma pessoa, já não seria uma super-Marine, não tenho de provar nada a ninguém, nem tenho de levar uma casa às costas. O doente é muito o gladiador que leva tudo à frente. Por isso detesto as palavras super-herói ou guerreiro, quase mostram que nos veem como seres do outro mundo e que temos capacidade de fazer mais do que ou outros. Não temos, só queremos é sobreviver a isto.

O humor não pode ser a cortina que tapa a verdade. Naquele momento serviu-me para isso, porque não podia estar 24 horas a chorar, ia ficar com uma grande de dor de cabeça, se no outro dia ia fazer quimioterapia. Eu tinha de estar bem. Foi uma questão prática.

Foi muito importante a minha família ter-me visto e percebido que [no pós-cancro] não me conseguiam ajudar sozinhos e que precisava de uma psicóloga e de uma pedopsiquiatra para um acompanhamento. Estava descontrolada emocionalmente, ora ria muito, ora chorava muito. Bem, também era adolescente e tinha um pós-cancro em cima de uma adolescência. Estava careca, tinha engordado 20 quilos e tudo isto pesa.

Digo sempre às pessoas para dizerem a verdade, para permitirem que os outros as vejam, e reconheçam que não estão bem. Mesmo quando os amigos dizem para não falar mais no cancro, que já passou, insistam e perguntem se podem falar do que as está a atormentar. Também recebo muitas mensagens de cuidadores a perguntar o que devem fazer quando o amigo ou o familiar tem cancro.

As pessoas ficam sem saber o que fazer?

Ficam, até mais que o doente. Por isso digo que este livro é sobretudo para os cuidadores, porque quem tem cancro aprende, à porrada, mas aprende. Quem não tem anda às apalpadelas.

Ao dizerem ao doente para não pensar mais na doença, que vai correr tudo bem, consideram que é assim que estão a ajudar?

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Às vezes podem estar a desvalorizar aquela dor. Mas também há momentos da vida em que também temos de sacudir os doentes para saírem da negatividade. É difícil conseguir essa assertividade, esse balanço, mas já o é na vida normalmente.

Às vezes a pessoa não quer ser ajudada, só quer ser ouvida?

Exatamente, mas isso é crescer e ser maduro. E os amigos também estão a sofrer, também têm as suas histórias. É preciso ser honesto e pôr a pessoa à vontade para perguntar se está a ser muito invasivo, dizer “olha tu nunca tiveste cancro, mas eu também nunca tive um amigo com cancro”.

Depois de todo o processo de tratamento, do seguimento para cuidar da saúde mental, hoje, passados quase 20 anos do diagnóstico, o que diria à menina de 13 que estava a lidar com um linfoma?

Em primeiro lugar dava-lhe os parabéns e dizia-lhe “estás a ir muito bem miúda”. Depois dizia-lhe para deixar que as pessoas a ajudem, para resolver as coisas no tempo certo, não tentar ultrapassar as fases, chorar o que tem a chorar, para se queixar porque ninguém espera que se passe por um cancro sem dar um ui. Eu não disse nem um ui e não digo isto com orgulho, digo-o com muita solidariedade e compaixão por aquela Marine, porque depois, aos 32 anos, ainda ando a resolver coisas que já devia ter resolvido. Hoje já tenho mais capacidade de pedir ajuda, mas é um processo.

Às vezes podem estar a desvalorizar aquela dor. Mas também há momentos da vida em que também temos de sacudir os doentes para saírem da negatividade. É difícil conseguir essa assertividade, esse balanço, mas já o é na vida normalmente.

Era precisamente por ter um núcleo familiar tão bem estruturado que não queria ser um peso? Já sabia que iria ser um motivo de preocupação, mas não queria ser um peso ao mostrar a sua vulnerabilidade?

Era o não querer ser um peso e o saber que, como filha mais nova, era a menina dos olhos do meu pai, e só pensava que gostava tanto deste homem que ia destruir-lhe a vida. Tinha essa responsabilidade.

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Nunca coloquei em causa que iria sobreviver, mas questionava, se me acontecesse alguma coisa, se eles aguentariam. Perguntei à minha mãe o que lhe ia acontecer se eu morresse. Ela foi muito corajosa e disse que gostava muito de mim e que fazia tudo por mim, mas que se me acontecesse alguma coisa não ia fazer nenhuma loucura porque tinha mais duas filhas para cuidar. Era só isto que eu queria ouvir. Isto tudo porque a minha mãe estava numa casa de apoio a mães e havia um menino internado que morreu e a mãe, que tinha mais dois filhos, não aguentou a dor e suicidou-se. Foi muito importante para mim ter tido esta conversa com a minha mãe, fiquei muito descansada e ela foi muito corajosa em me ter dito isto.

Quando namorava com o meu carequinha ele fez-me exatamente esta pergunta, e depois de eu ter reagido mal, respirei fundo e disse-lhe que estava muito apaixonada por ele, mas que já tinha sobrevivido a um cancro e queria muito viver e ia encontrar um rumo se ele partisse.

E foi por se ter sentido provocada, quase ofendida, pelo cancro que decidiu ganhar a vida a fazer humor com ele? Decidiu fazer uma espécie de vingança poética?

Sou assim, quanto mais me picam, mais eu quero dar a volta. É uma teimosia que me está no sangue. E sim, fiquei muito ofendida que o cancro me tivesse tentado matar. Fiquei lixada por me ter tentado tirar o tapete.

Fiz este projeto também porque nunca me importei com o que os outros pensavam. Eu fiz stand-up comedy em bares, era mesmo corajosa, no sentido de se quero tentar alguma coisa, vou tentar. A minha premissa é que alguma coisa vou aprender. Agora tenho a tal consciência crítica, mas quando era miúda e estava a começar o “Cancro com Humor” foi extraordinário, porque não tinha vergonha, não tinha medo, avançava para a frente. Foi muito um grito de revolta: se isto me aconteceu vou tornar isto numa oportunidade.

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Quando é que surgiu essa ideia de fazer nascer o “Cancro de Humor”? Foi logo com a intenção de ganhar a vida com este projeto?

Na altura não tinha planos, mas tinha muitos sonhos. Tirei o curso de Comunicação Social e a minha faculdade queria que eu fizesse um estágio em novos conteúdos, mas eu queria fazer em comédia. Como me disseram que não havia essa valência, então criei esse estágio para mim. Fui para uma empresa de comédia, tirei o curso de stand-up comedy, trabalhei em bares, eventos corporativos e aprendi na vergonha, porque no início era péssima, mas acabei com o meu orientador de estágio a dar-me 20 valores.

Depois sai dessa empresa, voltei para casa e não sabia o que queria fazer da minha vida. Sabia que adorava comunicação e adorava humor. Estava com um amigo, a chorar e a dizer que não sabia o que queria fazer da vida, quando ele disse que não me reconhecia, que quando tinha estado doente tinha tido imensa força e não me estava a reconhecer naquele momento. Ele relembrou-me essa Marine e na altura criei um projeto com outro nome: “Ensinar a Ser Doente”. Foi a primeira ideia de passar o meu testemunho de uma forma diferente do que se fazia em Portugal.

Contei a ideia à minha família, disse-lhes que ia usar a experiência do stand-up comedy para fazer comédia com o cancro. A minha família odiou, mas sabiam que eu ia fazer na mesma. Pensaram que eu ia gozar com o cancro. A reação deles foi muito importante para perceber que não podia ir por ali, tinha de partir da história pessoal, não podia ser com o humor negro, tinha de ser um humor de identificação. Não queria melindrar ninguém, queria empoderar.

Comecei um blogue onde testei os textos que depois foram para o primeiro livro e para as palestras. O meu público era 99% doentes oncológicos a dizerem que finalmente alguém pensava como eles. Entretanto criei uma página de Facebook e nessa altura o Rui Maria Pêgo, filho da Júlia Pinheiro, partilhou um texto meu com o título o “Caraças, queres ver que o cabelo comprido está na moda e eu com cancro?” Tive o condão da sorte.

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Fui ao meu primeiro programa de televisão na SIC com a Conceição Lino para falar sobre o projeto, mas não tinha nada porque só tinha uma ideia. Foi muito difícil, mas foi ótimo porque enquanto eu estava a ser entrevistada estava a construir o projeto. O “Cancro com Humor” foi construído de forma muito rápida, porque tive interesse dos media desde muito cedo.

Contei a ideia à minha família, disse-lhes que ia usar a experiência do stand-up comedy para fazer comédia com o cancro. A minha família odiou, mas sabiam que eu ia fazer na mesma. Pensaram que eu ia gozar com o cancro. A reação deles foi muito importante para perceber que não podia ir por ali, tinha de partir da história pessoal, não podia ser com o humor negro, tinha de ser um humor de identificação. Não queria melindrar ninguém, queria empoderar.

Depois durante cinco ou seis anos fiz palestras, percebi que tinha potencial, mas era medíocre. Fiz centenas de palestras gratuitas para todo o lado e meti na cabeça que ia ser melhor a fazer aquilo e as pessoas recebiam-me porque ia gratuitamente. Entretanto lanço um livro, lançou outro, este já é o quarto livro, apareceu uma agência que mudou a minha vida e hoje tenho um agente que me ajudou a profissionalizar. Comecei a fazer eventos corporativos e a ir a congressos. É muito lindo ver este crescimento.

Falou da reação da família quando disse que queria fazer humor com a sua experiência. Foi sintomática essa reação, porque a ideia que ainda prevalece é que não se brinca com uma coisa séria como o cancro?

Adorei que eles odiassem, porque era exatamente esse estigma que queria combater. Há uma frase do Ricky Gervais no especial da Netflix que diz que quando fazemos uma piada sobre alguma coisa muito má que nos aconteceu nunca estamos a aumentar essa dor. A única coisa que o humor pode fazer é o contrário, é relativizar essa dor.

Mas relativizar uma dor, ainda para mais de uma doença grave, ainda é um estigma?

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É e é algo muito português. A reação da minha família é a reação de 99% das pessoas. Mas, entretanto, as coisas mudaram. Eu sei que cada doente é um doente e que há pessoas negativas, mas ainda gostava que me dessem a conhecer uma pessoa com cancro que diga que adora gente negativa, chata, mal-humorada e que ache que o doente vai morrer. Isto não existe.

O estigma está na sociedade em geral e não nos doentes?

É mesmo isso e nós somos o resultado da sociedade. Há pessoas que são mais assim do que outras, mas eu sempre fui uma pessoa livre de preconceitos.

Há uma frase do Ricky Gervais no especial da Netflix que diz que quando fazemos uma piada sobre alguma coisa muito má que nos aconteceu nunca estamos a aumentar essa dor. A única coisa que o humor pode fazer é o contrário, é relativizar essa dor.

É mais fácil levar o projeto “Cancro com Humor” a quem está a passar pela doença do que aos cuidadores?

Completamente. Primeiro porque existe o fator de identificação. Eu estou a contar uma história em que a pessoa se identifica e revê e isso cria logo uma proximidade diferente. Depois porque o cuidador duvida. Há uma coisa extraordinária que os cuidadores dizem: se fosse eu, não seria capaz. E acreditam mesmo naquilo. Para já, é uma coisa que não se deve dizer ao doente, estão a dizer-lhe que ele é especial, que aquilo serve para eles e não para o cuidador. Uma espécie de “ainda bem que és tu e não eu porque eu não conseguiria”. Não é com essa intenção, mas pode ser levado para aí.

E não é verdade, porque as pessoas quando veem a sua vida comprometida descobrem características em si que não sabiam que tinham.

Em que momentos é que sente que é mal interpretada?

Tenho mesmo tido muita sorte. Pensei que ia sofrer uma avalanche de críticas e de incompreensão. Claro que acontece, mas comparativamente ao apoio e à compreensão é uma gotinha. Bem, também sou positiva e vejo sempre o lado positivo. Mas, no início foi complicado. Demorei muito tempo a conseguir o apoio da comunidade científica, por exemplo.

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Neste livro fui eu que convidei oito profissionais de saúde – três oncologistas, uma enfermeira, uma sobrevivente, a presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos, uma nutricionista – a defenderem e a utilizarem o humor para falar de cancro.

Os profissionais de saúde foram um público difícil?

E continuam a ser. Nas minhas palestras são sempre o público mais difícil. No início fiz uma palestra muito difícil que até me fez questionar se era um público em que devia apostar, mas recebi um email de uma pessoa que era médico há 40 anos a agradecer por o ter feito lembrar porque tinha ido para aquela profissão e que tinha aprendido muito comigo.

É inacreditável como podemos impactar a vida de uma pessoa com uma simples mensagem, este médico mudou a minha vida sem saber.

Considera que os profissionais de saúde, como estão numa batalha a garantir que o doente vai sobreviver, acabam por tornar o doente num objetivo? O que a Marine lhes leva é mostrar que à frente deles está uma pessoa e não apenas um objetivo?

Não diria melhor. É mesmo esse o meu objetivo. Agora já falamos cada vez mais na questão do doente no centro. Por isso é tão importante o papel das associações, a defesa dos direitos dos doentes, do empoderamento do doente.

A premissa fundamental é entrar neste processo a sentir que somos uma pessoa. E é tão fácil sentirmo-nos um objeto. Começa logo de início, no hospital. Aquilo é uma confusão para quem não conhece. Dão-nos uma senha, dizem que temos que ir ali, perguntamos ao segurança, ele também não sabe, andamos perdidos. Desde o momento em que pomos os pés no hospital tem de haver um acompanhamento que não existe.

Depois, temos uma consulta em que um médico nem olha para o computador para ver o nome do doente, só pergunta pelos sintomas. Conheço pessoas que ficaram traumatizadas não pelo diagnóstico, mas pela forma como lhe foi dito. É inadmissível. O nosso cérebro quando recebe uma má notícia não processa as coisas à mesma velocidade e fazemos perguntas que parecem estúpidas.

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Então e este “Manual para Descomplicar o Cancro” é para quem?

É para toda a gente. A pensar no doente, falo sempre de uma forma direcionada, nos cuidadores e é também para os profissionais de saúde. Este manual está a ser muito bem recebido também pela comunidade médica e é algo que me orgulha muito ouvi-los dizer que é um livro de leitura obrigatória, não é preciso ter cancro, ou conhecer alguém com cancro para o ler.

Quis mesmo que fosse um manual para toda a gente. É o meu pequeno contributo, mas se pudermos munir-nos de todas as ferramentas que estão ao nosso alcance ficamos mais ricos. Quem me dera, quando estava doente, que alguém me tivesse oferecido um livro deste género. Teria ficado muito feliz. Ter-me-ia sentido mais acompanhada.

Conheço pessoas que ficaram traumatizadas não pelo diagnóstico, mas pela forma como lhe foi dito. É inadmissível. O nosso cérebro quando recebe uma má notícia não processa as coisas à mesma velocidade e fazemos perguntas que parecem estúpidas.

Porque é que convidou profissionais de saúde para participarem no livro?

Em primeiro lugar porque ainda é um tema tabu, as pessoas ainda desvalorizam muito o humor e queria mesmo que as pessoas entendessem que esta forma de estar na vida, esta ferramenta pode ser utilizada no contexto científico e hospitalar e pode mudar a vida a uma pessoa.

O humor é o maior ato de amor. Quero mesmo ressalvar isto: não se trata de fazer piadas com cancro, trata-se de permitir que o humor entre na nossa vida, mesmo com um diagnóstico de cancro. E quis unir esforços, porque ninguém tem cancro sozinho. Há a família, os cuidadores, os médicos, os enfermeiros, os auxiliares e todos têm de ser chamados. Espero mesmo que este livro chegue a muitas pessoas.

Parece que há um manual de etiqueta neste livro. Quais são as regras básicas para lidar com um doente com cancro?

Gosto muito de dizer coisas sérias a brincar para ser mais fácil fazer passar a mensagem. Este manual de etiqueta dá alguns pequenos exemplos daquilo que nós, doentes oncológicos, não suportamos que nos façam. Por exemplo, nunca começar um elogio com a palavra “até”. Não digam a uma pessoa que está sem cabelo e sem sobrancelhas “até ficas giro careca”. Ninguém acredita num elogio começado com a palavra “até”.

E quando vão visitar o doente oncológico não façam aquela coisa horrorosa de ficar em pé, com a carteira na mão, provavelmente com o carro em quatro piscas, e dizer “vim cá dar só dar um oi”. Mostram claramente que não querem estar ali. Sentem-se e conversem.

O humor é o maior ato de amor. Quero mesmo ressalvar isto: não se trata de fazer piadas com cancro, trata-se de permitir que o humor entre na nossa vida, mesmo com um diagnóstico de cancro.

Outra coisa que não está neste livro, mas de que falo muito, são os presentes. As pessoas têm a tendência horrorosa de só dar dois tipos de presente ao doente com cancro: pijamas e chinelos. E podemos ter cancro em agosto que o pijama é sempre de flanela, porque se está doente, tem frio. Tenho 32 anos e nunca mais comprei pijamas, porque tenho um arsenal do tempo em que tive cancro. Passam a ver a pessoa apenas como um doente e esquecem-se que tem gostos musicais ou que pode gostar de ler.

Passou por um cancro e, tal como o resto do mundo, viveu esta pandemia causada pelo novo coronavírus. Mesmo assim, ainda acha possível levar a bom porto o seu mote: é possível ser feliz o caos?

Para mim só é possível essa forma de viver. Só tenho uma certeza: é que vim a este mundo para usufruir ao máximo e ser feliz. A vida é tão curta e a única forma é vivermos isto com leveza, com tranquilidade e com paz de espírito.

A minha pretensão não é ser feliz sempre, há altos e baixos, mas quero sentir-me o mais em paz possível e olhar para as dificuldades do dia-a-dia, como a pandemia, e sentir-me mais forte, sentir que são trampolins para outra coisa qualquer, porque, caso contrário, a vida é muito difícil.

E perdi tantas pessoas neste processo que tenho a obrigação de viver o melhor possível, porque esta oportunidade foi-me dada. Não sei se é culpa de sobrevivente. O cancro acaba por me acompanhar a vida toda, como um professor. A única forma de sermos felizes é mesmo ser feliz no caos.

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cancro | entrevista

20 Jul 2022 - 09:00

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