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Entrevista

Catarina Alvarez: “Em todos os lares deste país existe um número significativo de pessoas com demência”

2 Mar 2022 - 10:00

Entrevista

Catarina Alvarez: “Em todos os lares deste país existe um número significativo de pessoas com demência”

Catarina Alvarez não ficou surpreendida com as mais recentes estimativas para a prevalência das demências em 2050. Nesse ano, prevê-se que cerca de 350 mil pessoas vivam com demência em Portugal, sendo a doença de Alzheimer a mais comum.

A psicóloga da Alzheimer Portugal fala da premência da implementação no terreno da Estratégia da Saúde na Área das Demências, que assegure um percurso de cuidados intersectorial ao longo da vida do doente, e do alargamento a todo o território nacional do Estatuto do Cuidador Informal. Diz que “já vamos tarde” na luta contra estas doenças associadas ao envelhecimento, mas acredita que o ano de 2022 pode marcar a viragem da política de saúde pública para esta área.

Um trabalho publicado em janeiro deste ano na revista “The Lancet” avança com nova estimativa para a prevalência das demências. Segundo o artigo, em 2050 existirão no mundo 153 milhões de pessoas com alguma forma de demência. Para Portugal os investigadores estimam que serão 350 mil os casos. Atendendo à realidade que a Alzheimer Portugal conhece no terreno, parece-lhe que estes números poderão confirmar-se?

Estes números publicados pela “The Lancet” vêm ao encontro de outros números previamente publicados, designadamente pela OCDE em 2017 e pela Alzheimer Europe em 2019. Já sabíamos que iríamos ter de enfrentar o cenário de 350 mil pessoas com demência em 2050. Estes números vêm consolidar os que já conhecíamos e também chamam a atenção para aquilo que a Alzheimer Portugal tem alertado: a necessidade, de uma vez por todas, de planearmos e priorizarmos os recursos na área das demências em termos de saúde pública.

Já sabemos os custos diretos médicos e não médicos da doença de Alzheimer em Portugal, que é a forma mais prevalente de demências, e se considerarmos as outras demências estes custos aumentarão. Um estudo apresentado o ano passado mostrou-nos que os custos da doença de Alzheimer em 2018 chegaram a cerca de dois mil milhões de euros, cerca de 1% do PIB nacional. Estamos a falar de custos extremamente relevantes.

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Estes dados têm necessariamente de servir para implementarmos políticas públicas que visem melhorar a qualidade de vida das pessoas com demência e dos seus cuidadores e este estudo da “The Lancet” sublinha também a necessidade de trabalharmos no controlo dos fatores de risco modificáveis [para o desenvolvimento de demência]. É um aspeto muito importante que passámos a conhecer há relativamente pouco tempo. Sabemos que a idade é o principal fator de risco para desenvolver demência, mas agora também sabemos que há outros fatores de risco modificáveis que, se conseguirmos controlar, será possível reduzir até 40% das demências, o que ainda é um valor muito significativo.

“Atualmente conhecemos 12 fatores de risco modificáveis – baixo nível educacional, hipertensão arterial, diabetes, obesidade, abuso de bebidas alcoólicas, tabagismo, depressão, inatividade física, trauma crânio-encefálico, surdez, poluição atmosférica e isolamento social”.

Atualmente conhecemos 12 fatores de risco modificáveis – baixo nível educacional, hipertensão arterial, diabetes, obesidade, abuso de bebidas alcoólicas, tabagismo, depressão, inatividade física, trauma crânio-encefálico, surdez, poluição atmosférica e isolamento social – e, por isso, essas políticas públicas também têm que incluir a intervenção a este nível da prevenção.

A associação já vem dando nota que é premente encontrar-se uma estratégia nacional para as demências. Em 2018 entrou em vigor o despacho com a Estratégia da Saúde na Área das Demências que incluía a implementação de um plano nacional para as demências. O que foi feito desde então?

A estratégia, que é uma ferramenta de políticas públicas, foi publicada em 2018, mas precisa ser operacionalizada. Para esse efeito, em junho de 2019 foram enviados à secretária de Estado da Saúde à época os cinco planos elaborados por cada uma das administrações regionais de saúde e que em conjunto constituem o plano nacional para as demências.

Depois ficámos a aguardar. É verdade que, entretanto, a pandemia surgiu, mas ficamos a aguardar muito tempo por um despacho da ministra da Saúde que viesse dar luz verde à implementação destes planos regionais.

À data de hoje temos boas notícias porque este despacho foi efetivamente publicado há dias e, neste momento, organizamo-nos para dar início ao que devíamos ter começado em 2019, que era a implementação destes planos regionais que concretizam os princípios e as medidas desenhadas na estratégia.

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O plano passa por implementar respostas pensadas a nível regional, não só ao nível do acompanhamento dos doentes, mas também da prevenção?

Esta estratégia assenta principalmente no desenho do percurso de cuidados. O que temos de mudar no nosso país é criar percursos que acompanhem a pessoa com demência e as suas famílias desde a fase pré-diagnóstico até aos cuidados de fim de vida. Percursos que forneçam uma prestação de cuidados específica de proximidade, de continuidade e que acompanhe todas as vicissitudes que vão ocorrendo ao longo de uma doença que tem vários anos, várias fases e tem um percurso dinâmico em que as necessidades vão variando ao longo do tempo.

“Esta estratégia assenta principalmente no desenho do percurso de cuidados. O que temos de mudar no nosso país é criar percursos que acompanhem a pessoa com demência e as suas famílias desde a fase pré-diagnóstico até aos cuidados de fim de vida”.

A estratégia assenta exatamente na implementação destes percursos de cuidados que exigem, por um lado, uma integração de cuidados no que respeita aos cuidados de saúde prestados a três níveis – cuidados de saúde primários, hospitalares e continuados – e, por outro lado, esses níveis de cuidados têm de ter um diálogo intersectorial com o setor social. Sabemos que as pessoas com demência e os seus cuidadores, para além dos aspetos relativos à saúde, têm um sem número de necessidades que são respondidas pela área social, designadamente pelo Ministério do Trabalho e da Segurança Social.

Outro aspeto que a estratégia prioriza é que a abordagem aos problemas e às necessidades seja regional, porque como sabemos existem enormes assimetrias entre as várias regiões, apesar de o nosso país ser muito pequeno. É completamente diferente uma pessoa ter demência em Lisboa ou no Alentejo, Algarve ou Trás-os-Montes.

Uma das lacunas identificadas no terreno diz respeito ao tipo de resposta para este tipo de doentes. As estruturas residenciais para idosos são estruturas “generalistas”, será necessário apostar em cuidados diferenciados para pessoas com demência?

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Entendemos que a solução não passa exclusivamente por abrir espaços novos especificamente dedicados a pessoas com demência. Com certeza que no país já existem equipamentos deste tipo, dedicado especificamente às pessoas com demência e com pessoal especificamente qualificado para o efeito. A Alzheimer Portugal tem a Casa do Alecrim, que também é um centro de dia com apoio domiciliário. Mas sabemos que a solução não pode passar exclusivamente por equipamentos específicos para as pessoas com demência.

Por um lado, do ponto de vista dos custos seria incomportável, por outro porque nas estruturas residenciais para pessoas idosas já há pessoas com diagnóstico de demência e há pessoas que podem dar entrada nessas estruturas ainda sem diagnóstico e desenvolverem demência no contexto da sua institucionalização.

O fundamental é qualificar as equipas destas estruturas que não são específicas, mas que têm de ter pessoal qualificado e com capacidade para interagir junto de pessoas com demência porque em todos os lares deste país existe um número significativo de pessoas com demência.

A formação das equipas é fundamental para o sucesso da estratégia para as demências?

É um ponto-chave. Aliás, vem expressamente contemplado na estratégia nacional e nos respetivos planos regionais a qualificação das equipas. E quando falamos em qualificação, falamos também nas equipas de saúde, no contexto dos cuidados de saúde primários, no contexto hospitalar – ainda é muito difícil a permanência da pessoa com demência em hospitais – e também na rede nacional de cuidados continuados integrados.

Em termos dos equipamentos sociais, além da qualificação dos profissionais, também é necessário fazer algumas mudanças do ponto de vista ambiental, para que as pessoas com demência se sintam mais orientadas, mais confortáveis e seguras nos espaços, e também terem oportunidade de terem ocupações mais significativas fundamentais para o seu bem-estar.

Ocupações que permitam uma ginástica intelectual que não deixe avançar a doença e mantenha o doente com algumas capacidades cognitivas…

Exatamente. O que pretendemos com esse tipo de intervenções é potenciar e estimular as capacidades cognitivas que ainda permanecem durante o maior tempo possível e depois potenciar outro aspeto fundamental, de que se fala menos, que é a estimulação social.

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“É fundamental a pessoa sentir que é útil, que pertence a um lugar, a um grupo e que a pessoa possa ser convidada a fazer parte desse grupo. A estimulação social é fundamental a par da estimulação cognitiva”.

É fundamental a pessoa sentir que é útil, que pertence a um lugar, a um grupo e que a pessoa possa ser convidada a fazer parte desse grupo. A estimulação social é fundamental a par da estimulação cognitiva. O que desejamos é conseguir maior autonomia durante mais tempo, mas também maior bem-estar, designadamente maior bem-estar psicológico e emocional.

Há uns anos os diagnósticos de demência eram feitos já com algum avanço da doença, tanto nos cuidados de saúde primários, como nos cuidados hospitalares. Mantém-se este cenário?

Usou o tempo verbal passado, mas infelizmente ainda podemos fazer este tipo de afirmações no presente. Continuamos a ter diagnósticos muito tardios e os diagnósticos tardios têm consequências graves para a pessoa com demência e sua família.

Quanto mais tardio for o diagnóstico, mais tardia é a intervenção, e além de ser tardia a intervenção acarreta muitas vezes a impossibilidade de a própria pessoa poder planear a vida naquilo que pretende fazer no que respeita à vida pessoal, à vida patrimonial, mas também à saúde.

“Quanto mais tardio for o diagnóstico, mais tardia é a intervenção, e além de ser tardia a intervenção acarreta muitas vezes a impossibilidade de a própria pessoa poder planear a vida naquilo que pretende fazer no que respeita à vida pessoal, à vida patrimonial, mas também à saúde”.

Se for diagnosticada atempadamente a pessoa pode, por exemplo, elaborar um testamento vital e não ter que delegar na família decisões que são difíceis, que podem ser polémicas, disruptivas e causarem conflitos familiares. Estamos a falar do exercício de um conjunto de direitos.

A questão do diagnóstico atempado continua a ser, para nós, uma absoluta prioridade e também está identificada na estratégia nacional e nos respetivos planos regionais. Ainda há um caminho a percorrer para que mais pessoas tenham um diagnóstico atempado. Depois temos de criar os tais percursos, que também funcionem de forma rápida e, a partir do momento que esses sinais e sintomas são detetados, haja a capacidade de rapidamente a pessoa ser referenciada para um médico especialista para ser ou não confirmado o diagnóstico e para se fazer o que falta fazer pela pessoa.

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Existe esta falsa crença, demasiadas vezes dita inclusivamente pelos próprios profissionais de saúde, que a partir do diagnóstico não há nada a fazer, simplesmente porque não há um tratamento curativo. A Alzheimer Portugal combate muito esta ideia porque não corresponde, de todo, à realidade.

É verdade que não temos, atualmente, um medicamento que cure a demência, mas temos muita coisa a fazer do ponto de vista farmacológico e não farmacológico para melhorar o bem-estar, a qualidade de vida e a autonomia da pessoa com demência e da sua família.

“É verdade que não temos, atualmente, um medicamento que cure a demência, mas temos muita coisa a fazer do ponto de vista farmacológico e não farmacológico para melhorar o bem-estar, a qualidade de vida e a autonomia da pessoa com demência e da sua família”.

Na maioria das doenças crónicas, e as demências não são exceção, o papel dos cuidadores informais é fundamental para o bem-estar dos doentes. Em 2019 foi aprovado o Estatuto do Cuidador Informal, mas passado este tempo foi difícil avançar para os projetos-piloto, só em 2022 foi aprovado o alargamento dos projetos-piloto ao resto do país. Passados quase três anos, qual é a análise da associação da implementação deste estatuto?

Evidentemente que a publicação da Lei [com o Estatuto do Cuidador Informal] foi um marco importante, mas depois perdemos demasiado tempo com a implementação dos projetos-piloto. Sucederam-se várias vicissitudes e obviamente que a pandemia não terá ajudado. A forma como está redigido e pensado o Estatuto do Cuidador Informal obriga a uma particular articulação entre os serviços de saúde e os serviços da segurança social. O atraso de toda a implementação dos projetos-piloto também se deveu às dificuldades que existem de diálogo entre estes dois ministérios e foi necessário esperar que houvesse a criação de um conjunto de protocolos e de plataformas.

No que respeita aos projetos-piloto, estamos a falar de 30 concelhos no país quando existem 300 no total. Os resultados foram extremamente pequenos no que respeita à sua representatividade e se pensarmos já se passaram estes anos efetivamente o estatuto não contribuiu para a melhoria do bem-estar dos cuidadores informais em Portugal.

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Agora estamos numa nova fase, que nos renova esperança, porque com o decreto regulamentar de 2022 foi alargado o Estatuto de Cuidador Informal a todo o país. Chegados aqui pensamos que é excelente, só peca por tardio, mas alertamos para alguns aspetos. O primeiro é que um número significativo de cuidadores informais ainda não conhece o estatuto de cuidador informal e é fundamental levar a cabo uma campanha de divulgação clara e objetiva para que mais cuidadores informais conheçam o estatuto, o conjunto de direitos e de deveres que o mesmo elenca e o tipo e níveis de apoio que atribui e em que condições esses apoios podem ou não ser efetivamente atribuídos.

Também será necessário haver uma articulação efetiva no terreno. Este estatuto exige que, do ponto de vista local, existam profissionais de referência da saúde e da segurança social que trabalhem em conjunto para desenhar um plano de intervenção específico para aquele cuidador e para a pessoa cuidada. Vai ser exigente ao nível do terreno e estamos muito atentos a ver como se vai efetivamente desenvolver.

“Também será necessário haver uma articulação efetiva no terreno. Este estatuto exige que, do ponto de vista local, existam profissionais de referência da saúde e da segurança social que trabalhem em conjunto para desenhar um plano de intervenção específico para aquele cuidador e para a pessoa cuidada”.

Num segundo momento, outro aspeto que também nos preocupa será o reforço das medidas de apoio. Não no que respeita ao leque das medidas elencadas, que não se limita à atribuição de subsídio, mas passa também por informação, formação, apoio psicossocial e numa diferenciação positiva no acesso ao internamento para descanso do cuidador. Temos alguns aspetos que ainda não estão suficientemente regulamentados, designadamente a conciliação entre a atividade profissional e a prestação de cuidados e até mesmo a forma como os cuidadores informais e as pessoas de quem cuidam vão ser integradas para efeitos de descanso do cuidador. Falta uma portaria que torna esta solução prática e efetiva. E são precisas outras medidas de apoio, como o acesso a medicação, o apoio nos transportes, o contributo para a aquisição de produtos de apoio que são fundamentais a partir de determinada fase do curso da doença.

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Depois será também necessário rever o próprio Estatuto do Cuidador Informal porque este decreto regulamentar vem alargar a Lei e implementá-la em todo o país, mas não veio rever aspetos que para nós são cruciais, designadamente ampliar os conceitos de pessoa cuidada e de cuidador informal para que mais pessoas tenham acesso a este estatuto. E embora tenha existido algum esforço de desburocratização, precisamos continuar a desenvolver esse esforço para que o estatuto de cuidador informal seja acessível a todos os cuidadores, independentemente do seu nível de literacia e do local onde residam em Portugal.

Tem alguma estimativa de quantas pessoas, neste momento, são cuidadoras informais de pessoas com demência?

Não podemos dizer com segurança o número de cuidadores informais [de pessoas com demência], nem sequer conseguimos dizer quantos cuidadores informais existem em Portugal. A Alzheimer Portugal faz parte de um movimento, em conjunto com outras associações de doentes e cuidadores e com a Merck, para ajudar a que haja um maior reconhecimento e valorização do papel do cuidador informal. Neste contexto temos desenvolvido várias iniciativas e vários inquéritos.

No contexto deste movimento, quando nos perguntam quantos cuidadores informais há em Portugal nós temos apenas umas estimativas que decorrem de estimativas europeias. Num primeiro momento falávamos em cerca de 800 mil cuidadores informais e atualmente falamos em 1,4 milhões de cuidadores informais em Portugal, mas não conseguimos dizer deste número que fatia representa os cuidadores de pessoas com demência.

Por isso, fazemos outro tipo de inferências: se pensarmos que existem cerca de 200 mil pessoas com demência em Portugal e se pensarmos que existe um cuidador principal para cada uma delas, ainda que obviamente estas pessoas não estejam todas a passar pela mesma fase da doença, estaremos a falar muito facilmente de 200 mil cuidadores.

“Este movimento solicitou a colocação de uma pergunta específica no Censos 2021 para saber, de forma concreta e objetiva, o número de cuidadores informais em Portugal e lamentavelmente o Governo não aceitou integrar esta pergunta que seria tão importante até depois para estabelecer políticas públicas”.

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Mas, pela realidade que conhecemos e pelo acompanhamento às famílias que fazemos há muitos anos, sabemos que quando falamos em pessoas com demência não estamos apenas a falar do cuidador informal principal, falamos muitas vezes dos cuidadores informais secundários. Por exemplo: quantas vezes não sucede que a pessoa com demência residir com o cônjuge, que é naturalmente o cuidador informal principal, mas depois tem filhos que partilham a prestação de cuidados com o pai ou mãe e dedicam muitas horas a cuidar da pessoa com demência estando a trabalhar e a educar os seus próprios filhos. Se pensarmos assim é fácil dizer que duas ou três pessoas por agregado estão afetas à prestação de cuidados e aí estamos a falar de 200 mil, 400 mil, 600 mil cuidadores, sem qualquer dramatismo. Não estamos a empolar os números.

Contudo, não temos um número sólido para apresentar. Este movimento solicitou a colocação de uma pergunta específica no Censos 2021 para saber, de forma concreta e objetiva, o número de cuidadores informais em Portugal e lamentavelmente o Governo não aceitou integrar esta pergunta que seria tão importante até depois para estabelecer políticas públicas.

Pelo que acabou de descrever, pode dizer-se que a doença de Alzheimer é uma doença da família. Qual o impacto desta doença, em primeira instância no doente e depois na família?

Há muita literatura científica sobre este domínio e sabemos que as demências vão afetar de uma forma transversal a vida da pessoa com demência e da sua família. Afetam do ponto de vista psicológico, social, económico, do ponto de vista relacional as dinâmicas familiares e as dinâmicas conjugais. Cuidar de um pai ou de uma mãe com demência levanta desafios para o filho e respetivo cônjuge porque há uma alteração de dinâmicas que é exigida no decorrer da doença.

Há questões financeiras que se colocam e por vezes há um movimento que é perverso porque numa fase em que é necessária maior disponibilidade financeira acaba por haver menos disponibilidade financeira já que as pessoas trabalham menos horas ou até deixam de poder trabalhar exatamente para cuidar.

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Quer na literatura, quer no trabalho que a associação faz há muitos anos, conseguimos ver que a vida é muito modificada após um diagnóstico de demência e estamos a falar de um curso de doença longo e dinâmico. Se há necessidade de se adaptar há doença num primeiro momento, essas necessidades não terminam porque há novos comportamentos que surgem, há novas dificuldades e dependências, o cuidador está permanentemente obrigado a ajustar-se ao dinamismo desta doença.

Sabemos que há maior carga física e emocional nos cuidadores de pessoas com demência em relação aos cuidadores de pessoas mais velhas dependentes, mas sem demência. Um número muito significativo de cuidadores, designadamente as mulheres, sofre de sintomas depressivos por causa da prestação de cuidados, por isso é fundamental ter este aspeto da saúde mental em atenção, mas também a saúde física porque as pessoas vão desmerecendo a própria saúde porque estão muito focadas na prestação de cuidados.

“Se há necessidade de se adaptar há doença num primeiro momento, essas necessidades não terminam porque há novos comportamentos que surgem, há novas dificuldades e dependências, o cuidador está permanentemente obrigado a ajustar-se ao dinamismo desta doença”.

Muitas vezes é veiculada a mensagem que a pessoa com demência não sente, não tem consciência, não sabe o que está a acontecer. É uma mensagem errónea que desvaloriza o sofrimento e a angústia das pessoas com demência, porque são elas próprias que vivenciam o evoluir da sua doença e temos também de assegurar cuidados, designadamente ao nível da saúde mental para as pessoas com demência. Do ponto de vista psicológico temos de dar a oportunidade à pessoa com demência para recorrer a um profissional de saúde, a um psicólogo, porque viver na primeira pessoa uma doença destas não é de todo fácil, gera receios, medos, uma sensação de isolamento que é preciso combater.

E as pessoas com demência e os seus cuidadores também sofrem de outro tipo de embate que é o embate social. Há um estigma em relação às demências, a sociedade não aceita bem, não conhece, tem medo, foge do tema sempre que pode e as pessoas são deixadas muito sozinhas, às vezes até no seu círculo mais restrito, porque as pessoas não sabem lidar e afastam-se

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Atendendo a que um dos fatores modificáveis da doença é o isolamento social, os últimos dois anos não ajudaram nada à socialização, quer das pessoas institucionalizadas, quer das que estavam nas suas casas. Isto não augura nada de bom?

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Não augura nada de bom. Sempre que tenho a oportunidade de falar a questão da pandemia e das demências faço sempre esta afirmação e lembro as pessoas com demência que morreram no contexto da pandemia. Estamos a falar de pessoas particularmente vulneráveis que evidentemente sofreram mais do que as outras os efeitos do isolamento social. Os cuidadores também sofreram e ainda sofrem com a pandemia porque se já estavam isolados antes mais isolados ficaram e mais horas passaram a cuidar. Os centros de dia estiveram muitos meses fechados e apesar de os centros de dia em Portugal não terem ainda as condições adequadas para acolherem as pessoas com demência, não deixam de ser uma válvula de escape para a família ou porque os cuidadores trabalham ou porque, não trabalhando, precisam destes momentos de descanso. O fecho dos centros de dia foi um fator que contribuiu muito para o agravar da situação das pessoas com demência e das famílias.

Relativamente ao futuro, sabemos que o isolamento constitui per si um fator de risco para desenvolver demência e vivemos isolados vai fazer agora dois anos. Ainda não sabemos prever com rigor as consequências que este isolamento vai ter no desenvolvimento de demência, mas sabemos que é um fator de risco. Acreditamos, infelizmente, que ainda só conhecemos a ponta do iceberg no que respeita às consequências da pandemia para a saúde mental dos portugueses em geral e sobretudo nos portugueses mais idosos, que pela idade já têm risco acrescido de desenvolver demência, e foram vivenciando este isolamento que é um fator de risco e tem de ser combatido.

“Acreditamos, infelizmente, que ainda só conhecemos a ponta do iceberg no que respeita às consequências da pandemia para a saúde mental dos portugueses em geral e sobretudo nos portugueses mais idosos, que pela idade já têm risco acrescido de desenvolver demência, e foram vivenciando este isolamento que é um fator de risco e tem de ser combatido”.

Aliás se considerarmos estes fatores de risco em conjunto, podemos dizer que é absolutamente imperativo e os planos regionais para as demências se debrucem sobre este assunto, desenvolvam estratégias que se prendam com a adoção de estilos de vida mais saudável e que privilegiem não só a estimulação intelectual, como a estimulação social. É verdade que estes tempos contribuíam muito negativamente para o futuro da saúde mental em Portugal e para o aparecimento de novos casos de demência.

O cenário que conjuga o facto de sermos dos países mais envelhecidos do mundo com as consequências da pandemia pode fazer com que tenhamos uma bomba-relógio entre mãos nas próximas décadas relativamente à incidência das demências?

A forma como nos colocamos em termos de intervenção não é com uma visão apocalíptica. É com uma visão de esperança que no princípio deste ano foi renovada pelo despacho da ministra da Saúde com vista a implementar os planos regionais e pelo alargamento do estatuto do cuidador informal a todo o território nacional.

Mas o desafio é de enormes proporções. O desafio do ponto de vista de saúde pública, do ponto de vista social, em termos mais abrangentes, e depois o desafio de cada pessoa com demência e de cada pessoa que cuida de uma pessoa com demência, porque são precisas grandes transformações para que as pessoas sintam na pele, no melhor dos sentidos, os efeitos da mudança que estas políticas públicas podem fazer. Já vamos tarde, temos consciência disso e só temos que acelerar o ritmo de modo a evitar as tais consequências apocalípticas. A Alzheimer Portugal existe há 33 anos e nessa altura não se falava pura e simplesmente da demência em Portugal

Por isso, fazemos este zoom in e zoom out de modo a não perdermos a motivação e o empenho que temos tido exatamente a chamar a atenção de quem nos dirige, dos poderes públicos, do Governo e do Estado, de que fazemos parte da solução. É isso que sentimos, que temos de fazer parte da solução e temos sido chamados a fazer parte da solução e acreditamos que este ano de 2022 pode ser um ano de mudança.

Podemos, pelo menos, ultrapassar os obstáculos no que diz respeito à articulação entre todos. Com certeza que é preciso um envelope financeiro, mas importa também articular e estabelecer um diálogo que ainda não está verdadeiramente estabelecido entre a saúde e a segurança social para melhorar a qualidade de vida das pessoas.

Categorias:

entrevista | Neurologia

Etiquetas:

Alzheimer | Cérebro | demência

2 Mar 2022 - 10:00

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