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Comer laranjas e marisco na mesma refeição pode ser fatal?

11 Jan 2023 - 11:00
falso

Comer laranjas e marisco na mesma refeição pode ser fatal?

Várias publicações partilhadas nas redes sociais garantem que comer laranjas e marisco na mesma refeição pode ser fatal. Segundo um destes posts publicados no Facebook defende-se que o arsénio presente no marisco torna-se “tóxico” ao interagir com a vitamina C das laranjas devido a uma “reação química”. 

Na publicação em análise alega-se que uma mulher morreu devido à ingestão simultânea de camarão e de vitamina C. O autor do post considera que a combinação de marisco e vitamina C é “forte e perigosa” e deixa um conselho: “Não bebam laranjada nem comam laranjas depois de comerem marisco”.

Mas terão estas alegações fundamento? Confirma-se que comer laranjas e marisco na mesma refeição pode ser fatal? O que diz a ciência sobre a interação destes dois tipos de alimentos?

É verdade que comer laranjas e marisco na mesma refeição pode ser fatal?

laranjas e marisco

Não. Não existe evidência científica de que comer laranjas e marisco na mesma refeição possa levar à morte. Quem o assegura ao Viral é o nutricionista Pedro Carvalho, a professora e investigadora do departamento de Química e Bioquímica da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP), Susana Soares, e a nutricionista, diretora clínica da Nutrémia e diretora da Licenciatura de Dietética e Nutrição do ISAVE – Instituto Superior de Saúde, Teresa Campos.

Teresa Campos começa por explicar que não há provas de que “a ingestão conjunta de marisco e laranja, pelo facto de o primeiro ser rico em arsénio e de o segundo ser rico em vitamina C”, seja prejudicial à saúde.

Além disso, continua a mesma fonte, “existem outros alimentos ricos em vitamina C”. Logo, “caso houvesse algum suporte científico [para esta teoria], teriam que ser consideradas outras frutas e hortícolas”. 

Segundo a investigadora Susana Soares, “histórias destas circulam há muito tempo devido a um estudo que remonta para os anos 80”. 

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Na altura, explica a professora da FCUP, “os investigadores da Universidade de Illinois” concluíram “que formas de arsénio geralmente consideradas inofensivas podem tornar-se fortemente venenosas por meio de uma interação com a vitamina C, um composto presente nas laranjas”. 

Mas, na realidade, o marisco contém pequenas quantidades de “arsénio pentavalente que não interferem nos processos enzimáticos do corpo”. Aliás, a principal forma de arsénio presente nos animais marinhos é a “arsenobetaína, considerada um composto não tóxico sob condições de consumo humano”, esclarece.

Igualmente, a “arsenocolina” – a forma encontrada principalmente no camarão –  é quimicamente semelhante à anterior, na medida que é ‘essencialmente não tóxica’”. 

Como explica a investigadora, “a preocupação expressa no estudo foi que, durante um período de tempo, a prática repetida de comer mariscos contendo arsénio e tomar megadoses de vitamina C poderia resultar em exposição crónica a este elemento, levando a um risco aumentado de cancro”.

Mas, de facto, nada nesta investigação sugere que “uma refeição de camarão e vitamina C faria alguém ‘morrer repentinamente’”, como se alega nas publicações partilhadas nas redes sociais. 

De que forma interagem o arsénio e a vitamina C?

laranjas e marisco

Segundo a especialista em química e bioquímica, “tanto o efeito como a interação entre o arsénio e a vitamina C têm sido alvo de diversos estudos, mas as conclusões não têm sido unânimes”.

Por um lado, no estudo inicial dos anos 80, sugeriu-se que “doses elevadas de vitamina C” transformam o arsénio inofensivo do marisco na sua forma mais tóxica (trivalente).

No entanto, mais recentemente, “já foi reportado que a vitamina C (ou ácido ascórbico) aumenta a toxicidade não do arsénio, mas do arsénico” (é composto de arsénio, chamado trióxido ou ácido de arsénio) in vitro. 

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Noutro plano, refere o nutricionista Pedro Carvalho, outros estudos têm resultados opostos. Nestas investigações, chega-se à conclusão de que a presença da vitamina C reduz os efeitos nefastos do arsénio. 

O problema não é a ingestão pontual de arsénio, mas sim a exposição crónica 

laranjas e marisco

Importa sublinhar que a toxicidade dos alimentos naturalmente compostos por arsénio depende de vários fatores. 

No caso dos “cereais e dos produtos hortofrutícolas”, é preciso ter em conta a “capacidade de captação por parte da planta, o tipo de solo e as práticas de irrigação”, enumera a diretora clínica da Nutrémia. Em relação ao peixe e ao marisco, depende da “contaminação das águas”.

Aliás, a título de exemplo, têm sido feitos vários estudos com o objetivo de medir os níveis de arsénio nos camarões. O que se verifica, explica Susana Soares, é que “estes valores variam consoante a origem geográfica dos camarões e se são camarões de aquacultura ou de mar”. 

Ainda assim, as poucas quantidades de formas de arsénio que o marisco contém são “não tóxicas” e “absorvidas para a corrente sanguínea”. Se não forem metabolizadas, “são excretadas na urina”. Assim, numa só refeição “não é possível ter uma intoxicação por arsénio”, sustenta a especialista.

Portanto, “a questão não está relacionada com a ingestão pontual, mas sim com uma exposição crónica ao arsénio”, alerta. Estar permanentemente exposto a este elemento “pode levar à sua acumulação no organismo”.

Isto, por sua vez, pode dar origem ao “desenvolvimento de doenças cardiovasculares e sanguíneas, neurotoxicidade, dermatites e vários tipos de cancro, por exemplo”, avisa Soares.

O que é o arsénio e onde podemos encontrá-lo?

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“O arsénio é considerado, quimicamente, um metaloide, com propriedades intermédias entre os metais e os não metais”, começa por descrever a diretora da Licenciatura de Dietética e Nutrição do ISAVE.

Este elemento “está presente na natureza, nos solos, em depósitos sedimentares e nas águas subterrâneas”. Uma vez que “a sua forma elementar é rara, geralmente, existe combinado de forma inorgânica e orgânica”, destaca. 

Assim sendo, sintetiza a professora da FCUP, “quase todos os animais, incluindo o ser humano, têm alguma forma de arsénio no seu organismo”. Os frutos-do-mar em particular “são uma das principais fontes alimentares através das quais os seres humanos ingerem este elemento”. 

A diferença é que as formas orgânicas de arsénio (combinado com carbono e hidrogénio) “encontradas em fontes alimentares naturais são tipicamente menos prejudiciais do que as formas inorgânicas”. Por isso, em regra geral, “seria necessário ingerir grandes quantidades delas por períodos muito longos para sofrer efeitos nocivos significativos”, realça.

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Os três especialistas salientam que as quantidades mais preocupantes deste metaloide encontram-se na água. De facto, cita Pedro Carvalho, o arsénio inorgânico está naturalmente presente em níveis elevados nas águas subterrâneas de vários países tais como a Argentina, a China, a Índia, o México, o Paquistão, os Estados Unidos da América e o Vietname.

Em Portugal”, a concentração deste elemento “em aquíferos contaminados está a ser identificada e estão a ser construídos mapas de distribuição geográficas e hidrogeológica de arsénio para monitorização das águas”, conclui Teresa Campos.

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11 Jan 2023 - 11:00

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