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Entrevista

Catarina Oliveira: “As pessoas olham para a minha cadeira como se fosse um passaporte para a minha intimidade”

20 Abr 2022 - 09:00

Entrevista

Catarina Oliveira: “As pessoas olham para a minha cadeira como se fosse um passaporte para a minha intimidade”

Nutricionista, criada no Porto, tem 33 anos e nos tempos livres é DJ. É assim que Catarina Oliveira se apresenta quando lhe pedem que se descreva, ainda que muitos dos que com ela se cruzam tenham dificuldade em vê-la além do meio que a apoia nas suas deslocações. Em 2016, descobriu uma mielite transversa que a apresentou à cadeira de rodas e abriu-lhe as portas para uma realidade completamente nova: a das pessoas com deficiência. Desde aí, usa as redes sociais para contar histórias e desconstruir mitos relacionados com quem vive a mesma realidade.

Na página de Instagram “Espécie Rara sobre Rodas” partilha, com humor, os pormenores e os entraves colocados a quem vive com deficiência. Não gosta que lhe chamem “desgraçada” ou “aleijadinha”, nem que se atrevam a dizer que ela é “uma inspiração”. 

Qual seria a pior pergunta que poderia fazer nesta entrevista? Ou a pior coisa que poderia dizer-lhe?

Uma das piores coisas que me poderia dizer seria algo como: “Esta manhã, acordei e estava cheia de preguiça para vir trabalhar, mas depois pensei em ti e fiquei logo cheia de vontade”. Eu percebo que isto venha de um fundo bom, mas é altamente discriminatório para nós, pessoas com deficiência, porque põe a nossa vida como sendo algo tão miserável que faz com que alguém tenha vontade de viver a sua por comparação com a nossa suposta desgraça.

Estas frases inapropriadas são um tema frequente nas suas redes sociais, em particular na sua página “Espécie Rara Sobre Rodas”, onde partilha pormenores da sua experiência enquanto pessoa com deficiência. Antes de mais, o que é isso de ser uma espécie rara sobre rodas?

O termo “espécie rara sobre rodas” surgiu na brincadeira, quando comecei a partilhar nos meus stories (fotografias ou vídeos que ficam visíveis no Instagram durante 24 horas) a minha sensação. Tenho 33 anos e tenho uma deficiência motora, mas não fui sempre assim. Até aos 27, não tinha deficiência nenhuma. Houve aqui uma mudança na minha vida, sobretudo na forma como as pessoas olham para mim. A forma tão distinta como isso acontece fez com que eu me sentisse uma espécie rara em todos os ambientes onde eu circulo, quer seja na faculdade, no trabalho, num restaurante, numa discoteca. Sinto que não me consigo misturar na multidão. Entro num sítio e ouço aquele barulhinho das cabeças a virar.

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Quando comecei a partilhar essa sensação, as pessoas começaram a identificar-se e várias pessoas com deficiência já se intitulam também como “espécies raras sobre rodas”. Na altura, decidi mudar o nome do meu Instagram, o que acaba por ser uma forma de provocar as pessoas e de as pôr a pensar, porque, na verdade, nós não somos espécies raras. Simplesmente, as pessoas não estão habituadas a ver a pessoa com deficiência em todos os ambientes. E isso não é porque somos raros, é porque nós sempre fomos escondidos.

Antes do problema de saúde que a “apresentou” à cadeira de rodas, já tinha pensado nos entraves com os quais as pessoas com deficiência se deparam diariamente?

Para ser sincera, não. E, também por isso, o meu projeto e a minha forma de falar sobre a deficiência vai muito ao encontro de não atacar e de não julgar, mas sim de todos tomarmos consciência das coisas como elas são, e de, a partir daí, termos as responsabilidades de agirmos para construir uma sociedade menos discriminatória. Quando eu era uma pessoa sem deficiência não estava alerta para estas situações. Não que isso seja uma desculpa, mas eu não tinha ninguém à minha volta que tivesse alguma deficiência.

Hoje em dia, defendo que não temos de ter alguém à nossa volta com deficiência para estarmos alerta para um tema que é da sociedade. Por ter vivido isso na primeira pessoa, digo muitas vezes que é normal que não estejamos alerta para uma realidade que não é a nossa. Antes, quando subia uma escada, não pensava em quem não a podia subir. Hoje em dia, penso na escada porque não a consigo subir. No entanto, se puder deixar uma semente na cabeça de quem não vive esta realidade para estarem atentas, acredito que se juntem em nós para construirmos uma sociedade para todos.

Uma das piores coisas que me poderia dizer seria algo como: “Esta manhã, acordei e estava cheia de preguiça para vir trabalhar, mas depois pensei em ti e fiquei logo cheia de vontade”. Eu percebo que isto venha de um fundo bom, mas é altamente discriminatório para nós, pessoas com deficiência, porque põe a nossa vida como sendo algo tão miserável que faz com que alguém tenha vontade de viver a sua por comparação com a nossa suposta desgraça.

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Desde 2016 até agora, quais os principais mitos, crenças e preconceitos sobre as pessoas com deficiência com os quais teve, e ainda tem, de lidar?

O capacitismo, isto é, a discriminação contra a pessoa com deficiência, tem alicerces nos estereótipos e nos preconceitos que se criaram à nossa volta. Um dos mitos mais comuns é o de que nós somos todos muito infantis, muito incapazes. É frequente as pessoas infantilizarem-me, enquanto mulher adulta com deficiência que sou, falarem comigo com uma voz semelhante àquela com que se fala com as crianças, não me perguntarem o que eu quero. Há também o mito de que nós precisamos e queremos sempre ajuda, como se fosse obrigatório a pessoa com deficiência aceitar ajuda. É preciso perceber que em cima de uma cadeira de rodas está uma pessoa, com vontades próprias. Se alguém me oferece ajuda e eu recuso, a pessoa não deve impor a sua ajuda.

Há também preconceitos relacionados com as relações. Há quem acredite que uma pessoa com deficiência não se pode relacionar amorosamente com ninguém, que o meu namorado ou namorada serão sempre os meus cuidadores ou que estarão comigo por favor ou por pena, que eu não os vou satisfazer sexual e amorosamente. Existe  também o mito de que a pessoa com deficiência não pode exercer papéis como a maternidade e a paternidade e de que não pode ter relações casuais. Além disso, há também o mito de que não somos produtivos e de que não somos úteis à sociedade, sobretudo numa perspetiva empresarial. A lei das quotas veio trazer isto para cima da mesa. Muitas vezes, as empresas contratam pessoas com deficiência para preencher as quotas, mas depois encostam-nas para canto, não havendo a mesma possibilidade de progressão na carreira.

“Desde que existem seres humanos existem pessoas com deficiência, mas, ao longo dos anos, ou éramos mortos, ou éramos os bobos da corte ou éramos colocados em instituições e escondidos pelas famílias em casa. A sociedade não está habituada a ver-nos, e quando nos vê é tudo estranhíssimo”.

Na sua perspetiva, porque é que estes mitos e preconceitos persistem?

Em primeiro lugar, creio que há um grande medo de abordar a temática da deficiência, porque as pessoas não se sentem confortáveis com o tema, acham que as pessoas com deficiência são uma cambada de revoltados, que para nós nunca nada está bem, e que, por isso, mais vale ignorar o assunto e nem tentar falar com as pessoas. E como há esse medo, não há informação e o desconhecimento alimenta estes mitos. Por isso mesmo, eu trago os temas para as redes sociais de uma forma mais leve, sem isentando ninguém de responsabilidade, mas com algum humor.

Além disso, desde que existem seres humanos existem pessoas com deficiência, mas, ao longo dos anos, ou éramos mortos, ou éramos os bobos da corte ou éramos colocados em instituições e escondidos pelas famílias em casa. A sociedade não está habituada a ver-nos, e quando nos vê é tudo estranhíssimo.

O facto de existirem poucas pessoas com deficiência em lugares de destaque, nomeadamente na televisão, alimenta esses preconceitos e estas ideias capacitistas?

Sim. A questão da representatividade é muito importante. É fundamental as pessoas com deficiência estarem em todas as áreas da sociedade. Se nós somos pessoas e se há pessoas em todas as áreas da sociedade, porque é que não há pessoas com deficiência em todas as áreas da sociedade? Não é porque nós não queremos, é porque muitas vezes não chegamos lá. Desafio quem nos estiver a ler a pensar se já foram atendidos por um médico ou por uma médica com uma deficiência visível, se tiveram professores com deficiência, se foram atendidos no supermercado por alguém com deficiência, se já viram algum político com deficiência na televisão.

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É muito importante que se comece a abrir espaços e oportunidades para que as pessoas com deficiência estejam em todas as áreas da sociedade, a fim de que uma criança ou um adulto com deficiência olhem para aqueles lugares e percebam que podem estar em todos os lugares. Quando não nos vemos representados num lugar, achamos que aquilo não é para nós. E essa representatividade não pode ser considerada apenas em épocas especiais ou para a frente das câmaras ou para uma campanha especial. É preciso que as empresas contratem pessoas com deficiência e que estas tenham representatividade atrás das câmaras.

O que devemos fazer para que estes preconceitos e mitos desapareçam?

Antes de mais, é importante seguir o lema “nada sobre nós sem nós”. Isto é, não tentem saber sobre a deficiência ou fazer algo em prol das pessoas com deficiência sem nos contactar, porque isso dá sempre asneira. Diariamente, vejo coisas feitas supostamente para nós em que se vê que não houve intervenção de alguém com deficiência. Por isso, ouçam as pessoas com deficiência, consumam conteúdos feitos por elas, leiam livros, vejam séries. Aconselho sempre o documentário “Crip Camp”, que toda a gente devia ver.

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Depois, é importante pensar que todos nós podemos fazer alguma coisa, nomeadamente denunciando a falta de acessibilidade nos edifícios. Além disso, é importante falar e interagir com as pessoas com deficiência, fazer questões e agir com naturalidade. Não há mal em perguntar. Ninguém se vai sentir ofendido com uma pergunta com lógica e com contexto.

“É muito importante que se comece a abrir espaços e oportunidades para que as pessoas com deficiência estejam em todas as áreas da sociedade, a fim de que uma criança ou um adulto com deficiência olhem para aqueles lugares e percebam que podem estar em todos os lugares”.

E, por outro lado, o que não devemos fazer? E o que é não se deve dizer ou perguntar a uma pessoa com deficiência?

Para começar, não se deve fazer nem perguntar algo que não perguntaríamos a uma pessoa sem deficiência. Se pensarmos assim, fica tudo mais fácil. As coisas mais ridículas que acontecem comigo são algo como pararem-me na rua e perguntarem-me se vou voltar a andar. Ninguém faz isto com alguém que não tenha deficiência. Ninguém chega ao pé de alguém que não conhece e pergunta como é que vai o seu casamento. Então, porque é que fazem isso comigo? As pessoas olham para a a minha cadeira como se ela fosse um passaporte para a minha intimidade.

O meu conselho seria: não façam perguntas completamente desadequadas só porque uma pessoa tem deficiência e vocês acham que têm o direito de fazer uma pergunta. É como se a curiosidade das pessoas toldasse toda a noção que as pessoas deviam ter.

 

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