A batata tradicional “é um veneno” porque “aumenta mais a insulina do que comer açúcar puro”?
A alegação surge num vídeo do Tiktok a propósito de alimentos que fazem aumentar rapidamente a glicemia, ou seja, o nível de açúcar no sangue e ainda o nível de insulina (hormona que controla os níveis de açúcar).
Segundo o autor do vídeo, a batata tradicional (também conhecida como batata normal, branca ou inglesa), alimento rico em hidratos de carbono, “é uma bomba de insulina” que aumenta mais os níveis de açúcar no sangue do que a ingestão de açúcar puro.
Tudo isto, defende, transforma este alimento num “veneno” para o organismo que, como tal, não deve ser consumido. Será verdade?
A batata é mesmo um veneno? E será que aumenta mais a insulina do que comer açúcar?
Em declarações ao Viral, Francisco Sousa Santos, endocrinologista no Centro Hospitalar Lisboa Ocidental e autor da página Hormonas em Bom Português, explica que o autor do vídeo parte de uma ideia que tem um fundo de verdade para fazer uma extrapolação sem fundamento, apresentando a batata como um “vilão” da alimentação.
Em primeiro lugar, adianta o endocrinologista, “nenhum alimento deve ser considerado veneno”. Logo, não faz sentido rotular a batata tradicional como vilã, nem afirmar que tem um efeito tóxico no organismo.
“A batata, tal como o arroz, o pão, a fruta e qualquer outro hidrato de carbono, pode e deve fazer parte de uma dieta alimentar equilibrada e saudável, mas há que ter atenção à forma como é confecionada. É um alimento que deve ser comido com conta, peso e medida”, esclarece.
De facto, continua, a batata pode contribuir para aumentar os níveis de açúcar no sangue, mas a dimensão desse aumento vai depender do tipo de batata consumida (se é a branca, vermelha ou batata doce), da forma como é cozinhada, do organismo da pessoa que a vai ingerir e até do tipo de solo em que foi cultivada.
“A batata é um alimento rico em amido, que é um tipo de hidrato de carbono composto apenas por glicose. O açúcar simples contém sacarose, que também é outro hidrato de carbono, e é composto por glicose e frutose. A frutose vai ter um impacto menor na glicemia, daí que faça sentido dizer que o açúcar possa ter índice glicémico mais baixo do que alguns tipos de batata”, sustenta.
Segundo o endocrinologista, o puré de batata, por exemplo, é nutricionalmente mais interessante do que a batata frita, mas pode ter um índice glicémico (que indica a velocidade com que os alimentos ingeridos irão aumentar a glicemia, ou seja, os níveis de açúcar no sangue) mais elevado. Por outras palavras, o puré de batata pode provocar um aumento mais rápido dos níveis de açúcar no sangue do que a batata frita.
“Isto acontece porque os nutrientes ficam mais facilmente disponíveis para o nosso organismo quando estão triturados e isso acontece no puré de batata. A glicose também vai ficar mais rapidamente disponível dessa forma e vai aumentar rapidamente o índice glicémico”, completa.
Ainda assim, lembra Francisco Sousa Santos, comer batatas fritas, que são cozinhadas à base de gorduras prejudiciais para a saúde, não é uma opção saudável.
Quantidade e ingestão de outros alimentos também afeta índice glicémico
De acordo com Francisco Sousa Santos, a quantidade de batata ingerida numa refeição e os outros alimentos que estão no prato são outros fatores que vão influenciar o índice glicémico.
“Ninguém come só uma batata. Numa refeição, temos vários tipos de alimentos com vários tipos de nutrientes que vão ter um impacto nos níveis de glicemia além da batata. Os vegetais de folha, como a alface e os espinafres, são os alimentos que têm menos impacto”, explica. Isto acontece porque têm poucos hidratos de carbono, poucas proteínas e também poucas gorduras, os chamados lípidos.
Aliás, tal com o Viral já tinha referido neste artigo, a evidência científica sugere que impacto dos alimentos ricos em amido, como a batata, na glicemia pode ser reduzido se forem adotadas estratégias como, por exemplo, “combinar alimentos ricos em fibras, gorduras e/ou proteínas com alimentos ricos em hidratos de carbono” e “adicionar vinagre ou alimentos com vinagre (pickles) às refeições com elevado índice glicémico”.
No entanto, são necessários mais estudos para perceber o impacto real dessas estratégias, bem como os seus benefícios e riscos para diferentes condições de saúde.
Quais são os riscos de comparar a batata ao açúcar puro?
Desde logo, reforça o endocrinologista, “a batata tradicional não é nenhum demónio” e compará-la a um açúcar pode levar a que as pessoas a retirem da dieta, decisão que, avisa, seria errada — desde logo porque este alimento tem nutrientes importantes para a saúde.
Tal como a endocrinologista Joana Menezes Nunes já tinha explicado em declarações anteriores ao Viral, os tubérculos, como a batata, contêm hidratos de carbono complexos (que têm uma absorção mais lenta no organismo), enquanto o açúcar puro contém hidratos de carbono simples (que são absorvidos rapidamente).
Além dos hidratos de carbono, a batata também é composta por minerais, vitaminas do complexo B e C, potássio, fibra, cálcio, fósforo e ácido fólico, que são essenciais para uma dieta equilibrada e estilo de vida saudável.
Na página do Programa Nacional de Promoção da Alimentação Saudável dedicada à Roda dos Alimentos recomenda-se o consumo de “de 4 a 11 porções” de alimentos do grupo dos cereais e derivados e dos tubérculos, no qual a batata se inclui.
Além disso, num documento da Associação Portuguesa de Nutrição sobre a batata portuguesa, explica-se que este alimento possui valores energéticos (calorias) e teores de gordura variáveis dependendo da forma como é cozinhado.
Ao ingerirmos 100g de batata cozida, estamos a consumir cerca de 87 kcal (quilocalorias), mas zero gorduras. A batata assada, por outro lado, já tem 159 kcal e 4.8g de gordura, enquanto a sua versão frita tem 227 kcal e 10.8g de gordura.
Em suma, a batata tradicional pode contribuir para aumentar mais os valores de insulina do que o açúcar em si, mas continua a ser uma opção nutricional mais rica e saudável do que o consumo de açúcar puro. Além disso, o impacto da batata na glicemia vai depender de vários fatores.
Este artigo foi desenvolvido no âmbito do European Media and Information Fund, uma iniciativa da Fundação Calouste Gulbenkian e do European University Institute.
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