As pessoas também podem ter leishmaniose?
A leishmaniose é uma doença conhecida por afetar cães e gatos e até há uma vacina recomendada pelos veterinários para proteger os animais de companhia. É transmitida através da picada de um flebótomo, parasita semelhante a um mosquito de cor amarela que transmite a leishmania. Os flebótomos encontram-se maioritariamente nas bacias dos rios e zonas de águas paradas.
Depois do contacto com o agente transmissor através da picada, a doença pode apresentar-se sob a forma de leishmaniose cutânea, ou seja, surgem feridas na pele do animal; mucocutânea, que afeta os tecidos nasofaríngeos, como o nariz, a boca e o paladar; e visceral, com o parasita a infiltrar-se nos órgãos.
Em relação aos sintomas, na verdade, são muitos e variam consoante os casos. O mais comum é o aparecimento de feridas no corpo, especialmente à volta dos olhos e do nariz, perda de peso, inchaço dos gânglios linfáticos (ou seja, na zona do pescoço) e, em casos mais severos, insuficiência renal. Outro indicador de leishmaniose ainda mais raro é o crescimento rápido das unhas nos cães.
Uma coisa é certa: está cientificamente provado que um cão ou um gato com leishmaniose nunca vai transmitir a doença a um animal saudável ou aos próprios donos. Mas será que os humanos também podem ser infetados?
É verdade que as pessoas podem ter leishmaniose?
Sim. Apesar de ser mais comum no mundo veterinário, esta doença não é exclusiva dos animais e, tal como acontece com as espécies, pode manifestar-se nos humanos sob a forma de leishmaniose cutânea (úlceras na pele que provocam cicatrizes), mucocutânea (feridas e consequente destruição dos tecidos do nariz e da boca) ou visceral (lesões nos órgãos).
Segundo Tiago Marques, médico infecciologista no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, a leishmaniose “é a mais negligenciada das doenças tropicais”. Ou seja, a variedade de sintomas pode, muitas vezes, levar os médicos a suspeitarem de outras doenças e a realizarem um diagnóstico mais tardio, normalmente quando os sinais clínicos do doente pioram.
No entanto, acrescenta em declarações ao Viral, o tipo de leishmaniose que se manifesta na pessoa vai depender da zona geográfica onde vive. “A leishmaniose cutânea vem do Extremo Oriente, a mucocutânea da América do Sul e a visceral, também chamada de kala-azar, da zona do Mediterrâneo”, justifica o infecciologista.
De acordo com um documento da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre a doença, estima-se que existam entre 700 mil e 1 milhão de casos por ano de leishmaniose no mundo. A evidência científica presente neste estudo revela ainda que a infecção já foi encontrada em cerca de 89 países. A Oceânia é, até agora, o único continente em que não foram registados casos.
De acordo com Tiago Marques, a leishmaniose visceral é a forma de infeção que existe em Portugal. É frequentemente apelidada de “febre negra” porque, como o próprio nome indica, vai provocar alterações da pigmentação da pele e da coagulação do sangue. A par disto, pode provocar um aumento do fígado e do baço.
“Portugal é uma região hiperendémica (apresenta um número de casos estável) para leishmaniose e existem entre 15 e 20 casos por ano”, completa o médico.
As regiões do Algarve, Lisboa, Setúbal, Coimbra, Portalegre, Castelo Branco e Douro são algumas das zonas mais propícias à presença destes flebótomos e, por consequência, à transmissão da leishmaniose.
“Para detetar a doença é preciso fazer os exames certos. No caso da visceral, o exame implica encontrar o parasita numa amostra da medula óssea ou de um gânglio linfático. Estamos a falar de um parasita que anda num tecido profundo, mas já tivemos doentes em que encontramos no sangue.”
É possível contrair a doença por transfusão de sangue?
A forma mais comum da transmissão da leishmaniose é através da picada de um flebótomo que transporta o parasita da leishmania para o corpo da pessoa.
No entanto, existem exceções muito raras, casos que, alerta Tiago Marques, “só existem em cenas de filmes de série b”, como a mãe grávida que transmite a doença ao bebé, uma transfusão de sangue contaminado ou um transplante de órgão.
“São exceções e, enquanto médicos, não vemos a situação desta forma”, reforça.
Quais são os riscos de ficar infetado?
Tal como todas as doenças infecciosas, a leishmaniose tem cura e é tratável em algumas semanas. A par disto, esclarece o médico, depois de tratado, o paciente contagiado pode fazer uma vida normal.
No que diz respeito ao tratamento, continua o infecciologista do Santa Maria, consiste na administração de injeções de antiparasitários, sendo que o mais comum é a Anfotericina B. Nos primeiros cinco dias do tratamento estas injeções são administradas diariamente em regime em consultas no hospital ou de internamento.
“Depois disso, a pessoa terá que fazer tomas semanais durante mais algumas semanas, dependendo do grau de imunidade que tem. Na fase aguda da leishmaniose visceral, muitas vezes, é necessário internamento por serem doentes que têm alterações importantes da coagulação, sangram e têm as plaquetas baixas.”
Importa destacar que uma pessoa infetada pode voltar a ser picada pelo flebótomo mesmo depois de ter feito o tratamento. Nestes casos, o processo de cura é repetido, no entanto, espera-se que os sintomas sejam mais leves e que o médico, consultando o historial do paciente, suspeite desta doença.
Existe vacina para humanos?
Para os humanos, lamenta o infecciologista, não existe vacina contra a leishmaniose. No entanto, não significa que esta alternativa não tenha sido testada.
Tal como se lê neste estudo, já foram criadas algumas vacinas para humanos contra esta doença e, através de testes feitos a animais de laboratório, ficou provado que poderiam garantir a imunidade, mas nunca a proteção. O documento diz ainda que as vacinas nunca chegaram a ser desenvolvidas por falta de financiamento, interesse comercial e dada a “relutância de alguns investigadores” em enveredar por este caminho de ainda muitas incertezas.
Por outro lado, explica ao Viral Joana Prata, médica veterinária e docente no Instituto Universitário de Ciências da Saúde (CESPU), no Porto, já existe vacina para cães e gatos. Contudo, como não faz parte do leque de vacinas obrigatórias, deve ser o dono a pedi-la ao veterinário do animal. A leishmaniose canina e felina, ao contrário da humana, não tem cura.
Antes de administrar a vacina ao animal, é necessário fazer o teste da leishmaniose através da colheita de sangue. Se o resultado for positivo, o veterinário avança para o tratamento e, se for negativo, administra a vacina que deve ser reforçada anualmente. Os repelentes são outra forma de proteger o animal, mas não são tão eficazes como a vacina.
Em relação ao tratamento, adianta a veterinária, o animal tem obrigatoriamente que tomar medicação diária e até ao fim da vida.
“Apesar de não ter cura, conseguimos controlar sinais clínicos para que o animal tenha uma vida relativamente saudável. A leishmania vai continuar no sistema e até deixa de estar ativa, mas o animal continua infetado”, revela Joana Prata.
Da mesma forma, salienta, a vacina não garante uma “proteção de 100%”. De acordo com a veterinária, funciona como a da gripe, ou seja, protege o animal dos sintomas mais graves, mas não o torna imune à doença.
Tal como acontece com a leishmaniose nos humanos, o cão ou o gato pode ser novamente picado pelo flebótomo e ativar o parasita, mas os sintomas vão ser mais leves e mais fáceis de controlar.