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Antidepressivos “ainda fazem pior” e basta “sol” e “exercício” para evitar (ou tratar) depressão?

12 Jan 2023 - 08:00
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Antidepressivos “ainda fazem pior” e basta “sol” e “exercício” para evitar (ou tratar) depressão?

A tese de que os antidepressivos fazem mal e que basta ter um estilo de vida saudável para prevenir ou tratar uma depressão é a ideia-chave de um vídeo que se tornou viral nas redes sociais nas últimas semanas. O vídeo original foi publicado no TikTok, mas vários utilizadores do Twitter partilharam-no nos dias seguintes, criticando as declarações da autora da publicação.

Numa gravação com menos de dois minutos, a autora responde à pergunta de um seguidor sobre qual a sua opinião acerca dos antidepressivos e ansiolíticos (medicamentos com efeito calmante) dizendo considerar que “nem devia ser permitido andar aí a recomendar antidepressivos”, pois, na sua perspetiva, estes medicamentos “ainda fazem pior”.

antidepressivos

No mesmo vídeo, a criadora de conteúdos com mais de 70 mil seguidores na sua página de TikTok afirma não haver “nada melhor do que exercitar, ter uma boa nutrição e apanhar sol” e defende ser esse “o melhor antidepressivo que alguém pode tomar”.

Além disso, a autora do vídeo aconselha os seguidores a focarem-se na sua nutrição, a reduzirem “o tempo de ecrã no telemóvel” e a praticarem atividade física. A criadora chega a insinuar que uma má nutrição é, “provavelmente, a razão número um pela qual as pessoas têm depressão”.

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“Se não se sentem bem psicologicamente, basta irem lá fora correrem, andarem, apanharem ar, exercitarem, fazerem abdominais que vão sentir-se logo bem. Isso podem ter a certeza”, acrescenta.

Estas declarações suscitaram uma torrente de críticas e de comentários satíricos, alguns deles alertando para o perigo da mensagem veiculada no vídeo. Para verificar se as alegações presentes no vídeo têm ou não fundamento, o Viral contactou Ricardo Gusmão, psiquiatra, professor de saúde mental na FMUP e investigador no Instituto de Saúde Pública.

Os antidepressivos “fazem pior”?

“Objetivamente, isso é falso, ou seja, é errado”, começa por explicar Ricardo Gusmão quando questionado sobre se – como diz a autora do vídeo em análise – os antidepressivos “ainda fazem pior”.

O psiquiatra sublinha que os antidepressivos são medicamentos “regulados” que existem “há mais de 70 anos” e que, “se fizessem mal, não existiriam, seriam retirados do mercado” pelas entidades reguladoras. Além disso, lembra o especialista, os antidepressivos podem “salvar vidas” visto que “a depressão é a principal razão de suicídio”.

Nesse sentido, o investigador adianta existirem dois “tratamentos nucleares” para a depressão: os antidepressivos e as psicoterapias da família cognitivo-comportamental e interpessoal.

“Estes dois tipos de psicoterapia são mais para as situações que estão no limiar entre o normal e o anormal – mas que geram bastante sofrimento – e para as doenças ligeiras a moderadas. Os antidepressivos estão mais indicados para as doenças moderadas a graves, graves e muito graves”, acrescenta.

Além disso, completa, “a maioria das pessoas tem vantagem em associar ao antidepressivo a terapia cognitivo-comportamental ou a terapia interpessoal”.

Visão semelhante é partilhada num artigo publicado no site do balcão digital do Serviço Nacional de Saúde, em que se lê que “a maioria dos doentes apresentam melhorias dos seus sintomas quando tratados com antidepressivos, psicoterapia ou uma combinação de ambos”

Contudo, assegura-se no mesmo texto, “a escolha do tratamento deverá atender à: gravidade do quadro clínico; preferência do doente; presença ou não de outras doenças”.

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Por outro lado, continua o professor da FMUP, declarações como as que estão presentes no vídeo em análise podem aumentar o estigma em relação à depressão, um fator “que está na base da discriminação, do não acesso a tratamentos adequados e da procura de tratamentos que não funcionam”.

Ter um estilo de vida saudável é suficiente para evitar ou tratar uma depressão?

Embora reconheça que “fazer exercício físico, comer bem, dormir bem e ter um estilo de vida saudável” esteja relacionado com uma “saúde mental positiva” e possa “aumentar as probabilidades de a pessoa ter uma boa saúde mental”, Ricardo Gusmão lembra que estes hábitos são “medidas de higiene” e não o “tratamento” da depressão.

Por exemplo, acrescenta, “há pessoas que, independentemente de cuidarem muito bem delas, vão deprimir, vão ter problemas de saúde mental”, sendo que, “se tiverem uma predisposição genética para terem depressão, podem ter a doença e nem se compreender de onde ela vem”. Isto é,“pode não se conseguir compreender no seu entorno e nas suas circunstâncias de vida o que provocou aquilo”, parecendo “que o que provocou aquilo foi qualquer coisa dentro delas”. 

Contudo, o especialista assinala que, na maioria dos casos, a depressão está ligada a um “processo de luto complicado que fica patológico, que não corre bem, que varia”.

Este processo de luto, esclarece o psiquiatra, ocorre quando “a espécie humana chora uma perda de uma figura importante ou à qual atribui importância e à qual estava vinculada”, como, por exemplo, “uma morte, a perda de um status, de um rendimento económico, de um animal de estimação ou de qualquer coisa que a pessoa valorize muito”.

Nesse plano, quando este processo não corre bem, “os neurónios deixam de se conseguir ligar adequadamente, perdem ligações e a pessoa perde movimento, perde fluidez de pensamento e fica com ideias mais cinzentas sobre si, sobre o mundo, sobre o futuro, sobre o passado e perde o gosto em viver, porque deixa de sentir a vida e as coisas à sua volta”.

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O especialista refere a importância de distinguir a tristeza  e o sofrimento normais que fazem “parte da vida” da depressão enquanto “doença que pode ser muito grave”. E, embora a maioria das depressões não seja grave, “a maior parte delas também não são um episódio único”.

No mesmo sentido, o psiquiatra avisa que uma depressão não tratada pode deixar “cicatrizes”, tornando o doente “muito mais predisposto a vir a reagir à adversidade deprimindo” e a entrar num “círculo vicioso” que pode resultar “numa depressão crónica e persistente”.

Pela mesma ordem de ideias, Ricardo Gusmão acrescenta que o não tratamento da depressão “em pessoas afetadas por doenças cardiovasculares, neoplásicas, neurodegenerativas ou imunitárias aumenta a mortalidade e diminui substancialmente a qualidade de vida”.

Em conclusão, relativamente às alegações do vídeo em análise, o psiquiatra reitera “o impacto extremamente negativo, com consequências graves para as pessoas, através do aumento do estigma e da desinformação que a ignorância propalada desta forma amplifica”.

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Saúde mental

12 Jan 2023 - 08:00

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