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Entrevistas

Raquel Vareda: “Não sou nada paternalista na forma como faço Medicina”

21 Out 2022 - 04:52

Raquel Vareda: “Não sou nada paternalista na forma como faço Medicina”

Com mais de 45 mil seguidores no Instagram, Raquel Vareda pertence à geração de médicos que exerce a profissão entre o gabinete e as redes sociais. Nas mais de 2.600 publicações da sua página, tanto se pode encontrar posts sobre saúde como pormenores da vida pessoal. O objetivo? “Humanizar o médico e tirá-lo do pedestal”, para que a informação chegue de forma mais leve e mais clara à população em geral.

A poucos meses de terminar a especialidade em Saúde Pública, a médica expõe, em declarações ao Viral, as razões e os resultados de comunicar saúde de forma “aberta”, “leve” e sem “paternalismos”.

Começo com uma provocação. A que se deve esta “migração” de médicos e outros profissionais de saúde para o Instagram e para outras redes sociais?

Não querendo colocar palavras na boca dos colegas, creio que está relacionado com duas coisas. Em primeiro lugar, nós somos uma geração um bocadinho diferente e já crescemos com as redes sociais. Claro que existem colegas mais velhos nas redes sociais, mas não existem muitos colegas muito mais velhos do que eu no Instagram e noutras plataformas. Por termos crescido numa geração um pouco diferente, valorizamos de forma diferente o impacto que a comunicação nas redes sociais tem.

Os colegas mais velhos continuam a privilegiar a comunicação social mais tradicional, como a televisão, a rádio e os jornais. E, embora essa comunicação tenha um papel fundamental particularmente para algumas faixas etárias, a verdade é que as redes sociais têm um papel fundamental para as faixas etárias mais jovens.

raquel vareda

Além disso, por outro lado, creio que a nossa geração saiu daquele pedestal do médico e quer-se afastar da ideia de distanciamento em relação aos utentes, que antes era considerada importante para os utentes respeitarem as nossas decisões. Agora, penso que, como sociedade médica num todo, como classe, estamos a transitar para uma perspetiva mais próxima do utente, muito mais centrada na pessoa que temos à nossa frente, até porque é o que a evidência científica diz que devemos fazer.

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Nessa perspetiva, as redes sociais são um sítio em que nós estamos ao mesmo nível que qualquer utente e onde conseguimos ter esse contacto fora do ambiente de consulta. Assim, percebemos as necessidades dos utentes de um modo muito informal, o que nos permite promover mais facilmente a literacia em saúde, sem ter de respeitar as normas da televisão ou dos meios de comunicação tradicionais.

No seu caso específico, como começou este percurso?

Quando estava no terceiro ano da Faculdade de Medicina, criei a página de Instagram que era apenas uma página pessoal. Mas desde que entrei no curso percebi que havia uma lacuna de transmissão da informação.  Por isso, passei a partilhar não só coisas do meu dia a dia, como a alimentação e o exercício físico, mas também informação para a saúde. Isto porque sempre achei que muitos colegas estavam muito distanciados da população, e eu não me alinho nada com essa visão da Medicina, não sou nada paternalista na forma como faço Medicina.

A partir daí, a página foi crescendo, sobretudo depois de ter entrado na especialidade de Saúde Pública, particularmente, durante a Covid-19.

E como foi ver o crescimento desse número de seguidores?

É um misto. Por um lado, é um orgulho e uma realização sentir que as pessoas me seguem, confiam na informação transmitida por mim e gostam da forma como comunico. Por outro lado, com o crescente número de seguidores, também sinto uma responsabilidade adicional que não sei se adoro. É um bocadinho assustador passarmos de ter 100 pessoas que sabemos quem são a ver o nosso dia a dia para ter 10 ou 20 mil.

Além disso, sinto mais responsabilidade do que sentia antes.

Neste momento, tem mais de 45 mil seguidores. Isto obriga-a a ter um duplo cuidado a verificar o teor das suas publicações para evitar alimentar correntes de desinformação?

Exatamente. Eu tenho esse cuidado e já o tinha quando tinha menos seguidores, mas hoje em dia tenho ainda mais. Agora, muito mais facilmente peço ajuda a um colega ou confirmo a evidência, porque a massa crítica que me acompanha aumentou e quero ter a certeza de não estar a transmitir informação incorreta ou desatualizada.

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Nas suas redes sociais fala de temas delicados ou tabu, como o sexo e o dinheiro, com naturalidade. De onde vem essa forma leve e sem rodeios de comunicar? E que vantagens tem?

Todos nós somos produtos dos nossos genes e do nosso ambiente. Por isso, provavelmente, vem muito dos meus pais esta forma de falar abertamente de todos os assuntos. Mesmo para mim, isso nem sempre é fácil, mas eu forço-me a fazê-lo, porque considero importante. Eu sinto os tabus, apenas opto por não os manter.

Os utentes são diferentes, todos nós somos diferentes, e eu não sei se a forma como eu sou funciona para todo o tipo de utentes. Por isso, em consulta, tento sempre adaptar-me ao perfil do utente. Quando falo para a população em geral, faço-o da forma mais confortável para mim, ou seja, de um modo transparente e natural de falar sobre tudo.

raquel vareda

Quanto às vantagens, sinto que humanizar o médico e tirá-lo do  pedestal melhora muito a confiança dos utentes em nós. As pessoas conseguem perceber que somos seres humanos com vidas e problemas, próximos delas, que temos experiências que elas também conseguem compreender. E esse é também o feedback que recebo na minha página de Instagram.

Por outro lado, já teve alguma experiência desagradável no Instagram? Alguma publicação foi particularmente polémica?

As minhas publicações sobre as regras da Covid-19 foram muito divulgadas. Não sei se foram necessariamente polémicas, exceto o post sobre a vacinação. Na altura, fui muito pública sobre as vantagens da vacinação. A minha posição pró-vacinação era muito clara e sempre expliquei os riscos, os benefícios e tanto aquilo que já se sabia quanto o que ainda não se sabia. Por isso, em alguns momentos, particularmente quando se começou a falar em vacinar as crianças, houve algumas pessoas a partilhar a publicação, mas a tentar denegrir a informação e a dizer que eu estava a ser paga pela indústria.

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No seu trabalho e no seio da comunidade médica, esta exposição também tem sido bem recebida?

Diria que a esmagadora maioria dos colegas com os quais já falei recebe bastante bem o meu trabalho nas redes sociais. Geralmente, dão-me os parabéns pela página e pela minha comunicação. Também já tive alguns colegas a dizer-me que não gostam da forma como eu abordo os temas, que acham que sou demasiado próxima dos utentes e que não transmito a responsabilidade e a autoridade necessárias ao misturar partilhas da minha vida pessoal com informação médica, mas são a minoria. E eu não concordo com esta segunda visão. A minha vantagem é exatamente os utentes perceberem que, além de médica, sou uma pessoa. 

Faltam três meses para se tornar médica especialista em Saúde Pública. Tendo em conta a sua experiência profissional, quais são os principais mitos presentes na sociedade que prejudicam a saúde pública?

Creio que os principais mitos estão relacionados com a vacinação. E estas ideias são motivadas por um estudo com dados falsos e que já foi mais que desmistificado sobre uma suposta relação entre as vacinas e o autismo. Essa desinformação continua a circular e, no meu dia a dia, por vezes, sou chamada pelos enfermeiros da vacinação para falar com algum utente que tem medo das vacinas por causa desse estudo.

Felizmente, vivemos num país em que a população ainda sente alguma confiança nas entidades. Por isso, além da vacinação, só me consigo lembrar da questão dos antibióticos, que não será bem um mito, mas sim falta de literacia em saúde. Quero com isto dizer que continuamos a ter um grande problema de os utentes não perceberem quando é que o médico deve ou não prescrever antibióticos. Na altura da gripe, muitos utentes ficam aborrecidos quando os profissionais de saúde não prescrevem antibióticos, por exemplo.

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E, enquanto sociedade, o que podemos fazer para desmistificar ideias como estas?

Na minha perspetiva, a comunicação em saúde é fundamental e deveria existir a todos os níveis, ou seja, nas redes sociais, na comunicação social tradicional e na comunidade escolar, etc. Era importante existir também mais comunicação sobre saúde nas telenovelas, nas séries televisivas e nos filmes nacionais. Quem os produz poderia pedir consultoria aos profissionais das unidades de Saúde Pública para tentar transmitir informação, através de alguma personagem, sobre comportamentos que contribuam para a saúde.

Quanto à desmistificação, infelizmente, a forma como o cérebro humano funciona faz com que, depois de lermos uma informação errada – e mesmo que a seguir leiamos algo que a desmistifique -, seja muito menos provável ficarmos com a segunda informação. Frequentemente, as pessoas ficam com a primeira ideia. Por isso, devemos continuar a fazer fact-checking, como o Viral faz, mas gostava que trabalhássemos mais na prevenção da disseminação da informação falsa.

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