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Entrevistas

Rita Selas: “As pessoas que sempre viveram em ‘overthinking’ dificilmente veem isso como um problema”

2 Out 2024 - 10:21

Rita Selas: “As pessoas que sempre viveram em ‘overthinking’ dificilmente veem isso como um problema”

Uma página de Instagram acabou por gerar um livro no qual Rita Selas, psicóloga, desbrava o conceito de overthinking que, de forma leiga, tantas vezes é, displicentemente, traduzido do inglês como “pensar demais”.

Pensar, de facto, todos pensamos, só que há pessoas em que o padrão de pensamento repetitivo vai além da preocupação natural pelos acontecimentos do dia-a-dia. Ficam presas em pensamentos intrusivos, analisam o antes, o durante e potenciam para um depois sempre o pior que podem imaginar.

Em “Desatar o Nó — Aprende a Romper o Ciclo do Overthinking”, a psicóloga mostra, em textos pontuados com ilustrações também de sua autoria, como as experiência moldam o pensamento repetitivo da preocupação excessiva e, em entrevista ao Viral, avança com algumas estratégias que podem ajudar a desatar os nós cegos do overthinking

Não há nada melhor do que começar por perceber o que é este conceito do overthinking ou de pensamentos recorrentes. Do que estamos a falar?

Antes de entender o overthinking é preciso perceber o que é isto do pensamento, como ele se processa, porque é que ele acontece e se é possível que consigamos evitá-lo. É por aí que começo o livro, a explicar como é que o pensamento funciona, as funções que tem e como a nossa forma de pensar tem influências externas. Depois, sim, falamos de overthinking quando percebemos que todos os processos que acontecem no pensamento – sejam disfunções cognitivas, das quais também falo no livro, ou outras – levam ao loop [ciclo repetitivo] de pensamentos.

Então o que surge primeiro: o overthinking ou as disfunções cognitivas?

O que nasce primeiro é a nossa interação com o mundo que vai influenciar o nosso pensamento, a forma como analisamos e interpretamos o que acontece. É isso que vai alimentar todo um padrão de pensamento, de formas de analisar tudo o que acontece à nossa volta e que, muitas vezes, são baseados em processos na nossa cabeça muito involuntários a que chamamos de distorções cognitivas. Acontece quando generalizamos acontecimentos, quando catastrofizamos, ou seja, quando pensamos no pior cenário das situações.

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Quando não conhecemos a forma como o cérebro processa a informação, quando olhamos para o nosso pensamento como factos, não o questionamos e a relação que temos com aquilo que nos surge à cabeça é que pode, depois, manifestar-se em overthinking, em ansiedade, em comportamentos desadaptativos porque vamos tentar agir para prevenir o que nos surgiu na cabeça.

Mas como é que esse processo de overthinking se desenvolve na nossa cabeça?

As pessoas falam no overthinking de uma forma um pouco leve e isso incomoda-me um bocadinho. Claro que todos nós temos momentos em que, ao processarmos informação, ficamos encalhados em algum problema ou em algo mais difícil de resolver, ficamos ali a remoer, como se diz.

Mas o overthinking é um padrão de pensamento, uma forma de pensar recorrente que mais facilmente encontra problemas sem solução do que encontra as soluções que queremos quando entramos neste looping de pensamentos.

No fundo, um padrão de overthinking é construído por pensamentos intrusivos, que todos temos como forma de processar a informação à nossa volta, e a relação que temos com esses pensamentos intrusivos.

Por exemplo, uma pessoa extremamente ansiosa, que tem muitas inseguranças, está a caminhar na rua e, entretanto, lembra-se: “mandei uma mensagem a uma amiga e ela não respondeu”. Este é o pensamento intrusivo a partir do qual, depois, começa toda uma forma desadaptativa de processar esta informação, formando o padrão de overthinking, toda uma associação negativa a esse pensamento: A minha amiga já não gosta de mim, está zangada comigo. O que fiz de mal para ela não responder?

Há todo um loop de pensamentos sobre os quais a pessoa não tem controlo, nem lhe apresenta solução para aquilo que está a acontecer. Apontam sempre o holofote para o problema.

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Disse que há uma visão um pouco leve sobre esta questão. Foi por isso que pensou em escrever este livro?

Escrevi o livro a convite de uma editora porque fiz um post na minha página de Instagram sobre o tema. Fiz o post na sequência de, em consulta, as pessoas me relatarem um problema, dizerem que ficaram a pensar nele, o que é super normal que o façam, mas diziam que era em overthinking. Na realidade, eu conseguia ver que não era bem em overthinking e percebi que este conceito estava a ser mais utilizado, mas as pessoas usavam-no de uma forma muito leviana. Ao passo que, outras pessoas que estavam  [a funcionar] em modelo de overthinking não queriam usar o termo. Havia uma confusão com o conceito que era preciso esclarecer.

E na pesquisa que fiz percebi também que o overthinking ainda é mais problemático do que aquilo que pensava. Está muito associado a um padrão de pensamento de depressão, de perturbação de ansiedade. É mesmo um padrão de pensamento quase patológico, porque há um discurso interno muito negativo, uma visão do mundo muito negativa e sempre em loop, sem conseguir relativizar, sem sair desse pensamento para o ver de fora.

O que nasce primeiro são estes pensamentos recorrentes ou é a ansiedade e a depressão? Uma pessoa ansiosa ou com depressão tem mais tendência para este tipo de pensamentos ou é uma pessoa em padrão de overthinking que mais facilmente desenvolve ansiedade ou estados depressivos?

O overthinking é uma questão em que uso o termo transdiagnóstico porque pode ser um sintoma de uma perturbação, seja de depressão ou de ansiedade, mas também pode ser um fator que leva ao desenvolvimento de uma perturbação.

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Ou seja, por um lado, overthinking pode fazer parte da conduta de funcionamento de uma pessoa, porque esta se desenvolveu num ambiente que a obrigou a ter esta conduta, que poderá desenvolver alguma perturbação se mantiver esta conduta.

Por outro lado, uma pessoa que viveu algumas experiências e desenvolveu uma depressão, nessa perturbação pode encontrar este padrão de pensamento [recorrente] sem nunca o ter tido antes.

Seja em que contexto for, o fator comum no overthinking são as nossas experiências, a forma como as vivenciamos, como lidamos com as nossas emoções e a relação que temos com os nossos pensamentos, com o medo e a ansiedade gerada pelos nossos pensamentos. 

Podemos, então, dizer que os pensamentos influenciam as nossas ações? No livro diz algo semelhante…

Voltando ao mesmo exemplo, se eu pensar que a minha amiga está chateada comigo porque não me responde às mensagens, obviamente isso vai gerar emoções mais intensas – zanga ou tristeza – que, automaticamente, vão resultar num comportamento que não é ajustado à situação da tal amiga não ter respondido.

Isto é, o pensamento inicial alimentou todo um conjunto de emoções dentro de mim que motivaram um comportamento em resultado do que pensei.

É a partir do momento em que este padrão de pensamento condiciona a forma como nos posicionarmos na sociedade que é preciso procurar ajuda especializada? 

Pode ser, sim. Muitas vezes, as pessoas que sempre funcionaram com este padrão de overthinking dificilmente vão achar que é um problema. Pensam que é apenas a forma deles funcionarem.

Dificilmente o insight vai ser sobre a forma como pensam, mas se observarem os contextos, as dinâmicas das relações, os problemas que surgem nas relações com as outras pessoas pode ser uma forma de ver que alguma coisa não está bem e precisa de ser olhada e entendida.

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A forma apressada como vivemos, o foco no trabalho, no desempenho, o peso das redes sociais, sem momentos para desligar da rotina diária cria um terreno fértil para começar a gerar este tipo de pensamentos?

Sem dúvida. Abordei esse ponto de forma muito leve no livro, mas toda a influência das redes sociais, de estarmos constantemente expostos à comparação é inevitável [gerar mais casos de overthinking]. 

Neste ponto, falo de uma questão muito importante que é a educação emocional, que não é promovida na educação [nas escolas]. Crescemos a saber fazer contas, mas sem saber gerir as nossas emoções, sem saber olhar para nós e percebermos as nossas relações com os outros. 

Hoje, vemos crianças que ainda estão a aprender a interagir com os seus pares, mas já sabem interagir na perfeição nas redes sociais. Já estão a moldar a sua interação para aquilo que é uma interação na rede social, mas ainda estão a aprender aquilo que é a interação relacional presencial.

O título do livro é “Desatar o nó”. É possível aprender a desatar este nó dos pensamentos? Que estratégias podemos implementar?

É possível, sim, mas, em primeiro lugar, é importante perceber que o nó existe. Olhar para o nó, começar lentamente a desemaranhá-lo e se for em contexto de terapia melhor.

Há todo um conjunto de hábitos de vida que devem acompanhar este processo porque posso conseguir desatar o nó, mas, se não mudar hábitos de vida, se não mudar a forma de olhar para as coisas e de pensar sobre elas, a probabilidade de criar outros nós é grande.

É preciso analisar todos os hábitos, os contextos em que me insiro, as amizades que crio, a relação que tenho comigo, o discurso interno que tenho, as coisas em que acredito. São estratégias que apresento no livro e acho importante a pessoa fazer para começar o percurso de desatar o nó.

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Mas pode dar um exemplo de um exercício que pode ser construtivo neste processo?

Podemos ter perceção das distorções cognitivas, por exemplo, porque é  fácil uma distorção cognitiva tornar-se num padrão de overthinking.

Uma estratégia fácil é perceber que quando estamos perante um pensamento no qual existem palavras como “sempre”,  “nunca”, “todos”, “nada” ou “ninguém” é porque estamos perante uma distorção cognitiva, é uma generalização.

 Por exemplo, ideias como “ninguém gosta de mim”, “ninguém quer saber” são pensamentos que têm de ser questionados, a começar por perguntar que factos contrariam esse pensamento, que outra forma existe de interpretar a situação que levou a esse pensamento.

Escrever também pode ser uma ferramenta útil, numa estratégia mais de escrita terapêutica. Quando se acaba o dia de trabalho, em que aconteceu muita coisa e se sentiu muita coisa, podemos escrever para processar tudo o que aconteceu. Podemos tentar escrever as sensações sentidas em situações específicas, nomeá-las, estar aware [consciente] do que aconteceu. Escrever é como dar forma ao pensamento, assim como verbalizá-lo, podemos tomar consciência de perguntar como viemos parar ali e pode não fazer sentido nenhum.

Tem uma rubrica no seu perfil, “Penso, logo exausto”. Numa altura em que se fala tanto de burnout e de exaustão a nível profissional e pessoal, efetivamente são os pensamentos que nos cansam? É a cabeça que nos dá a esta sensação de exaustão?

Às vezes nem é pelos nossos pensamentos, mas pela forma automática em que vivemos. Estamos constantemente em piloto automático e as pessoas que sempre viveram sob um padrão de overthinking dificilmente vão ver isso como um problema.

Às vezes a exaustão é por nem sequer pararem para perceber o que está a acontecer dentro da cabeça e por só funcionarem em modo automático.

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