“Dores menstruais não são normais.” A “provocação” de Catarina que chama a atenção para a endometriose
Catarina Maia tinha 25 anos quando descobriu o motivo das dores menstruais agonizantes que sentia todos os meses. Tinha endometriose. Uma doença caracterizada pela presença de tecido endometrial (aquele que reveste o interior do útero) fora da cavidade uterina que a faz sentir como se tivesse “uma trituradora dentro da pélvis” sempre que menstrua.
O diagnóstico chegou em 2017, o mesmo ano em que criou a página de Instagram “O meu útero”, com o objetivo de chamar a atenção para as questões ligadas à endometriose, à menstruação e à saúde sexual. Fá-lo a partir do lema “Dores Menstruais Não São Normais”, mote que serviu também de título ao livro que acaba de lançar sobre a doença que afeta uma em cada dez mulheres em idade reprodutiva.
Em entrevista ao Viral, conta como lidou com o diagnóstico, explica os principais mitos sobre a endometriose e defende a criação de políticas públicas para tornar mais digno o tratamento dos sintomas da doença.
Dores menstruais não são normais. Este é o título do livro e o lema da página “o meu útero”. Qual é a importância deste lema na sua vida?
Este lema é a principal provocação que faz com que as pessoas prestem atenção ao tema da endometriose. E esta frase é contra tudo aquilo que nos dizem durante a nossa vida toda, embalando também, de certa forma, a nossa noção do que é ter o período. Quando se pensa em menstruar, pensa-se muitas vezes em dor. Por isso, creio que dizer que as “dores menstruais não são normais” é uma forma acessível e direta ao assunto de chamar as pessoas para o problema da endometriose.
Como descobriu que tinha endometriose? Foi fácil chegar ao diagnóstico?
Descobri porque já estava à procura do diagnóstico. Já tinha ouvido falar da doença, porque tenho uma prima que tem endometriose e havia muitos pontos em comum, sobretudo sintomas. Nessa altura, já tinha perguntado ao meu médico ginecologista se podia ter a doença, e ele respondeu-me que seria muito pouco provável. Também já tinha falado com a minha médica de família que também me disse que não fazia sentido nenhum eu achar que tinha endometriose. Entretanto, contactei a Associação Portuguesa de Apoio a Mulheres com Endometriose e obtive o contacto de um médico especialista. Aí, marquei uma consulta e fui diagnosticada.
E que sintomas eram esses? Que tipo de dores sentia?
Agora que fui mãe, acho que são iguais às dores de parto. Obviamente, não numa fase muito avançada do parto. Sinto como se tivesse uma trituradora dentro da minha pélvis. É uma dor que vai e vem e é extremamente dolorosa. Não consigo estar em pé, não consigo estar sentada e não consigo andar. Só consigo estar deitada. E se não tomar nada para a dor, não aguento.
No momento do diagnóstico, sentiu-se aliviada por ter explicações para aquelas dores menstruais agonizantes ou o diagnóstico assustou-a?
Senti as duas coisas. Por um lado, o diagnóstico assustou-me um pouco porque sabia que era a confirmação de que estava a lidar com algo que seria para sempre, porque a endometriose é uma doença crónica e porque tinha muito medo de não conseguir ter filhos. Mas, por outro lado, também me aliviou, porque foi uma confirmação das minhas queixas. Lá no fundo, já tinha percebido que aquelas dores não eram normais, que havia um problema qualquer, e o diagnóstico veio confirmá-lo.
Que receios surgiram na altura?
A questão da infertilidade foi o meu principal receio. Na altura, pensava que a endometriose significava necessariamente infertilidade na esmagadora maioria dos casos, o que não é verdade. Isto porque eu tinha feito pesquisa sobre a doença e só encontrava resultados relacionados com esta questão, o que se justifica pelo facto de que uma boa parte das mulheres só descobre a doença quando está numa fase de procurar o motivo pelo qual não está a conseguir engravidar. Infelizmente, nesses casos, em comparação com outro tipo de queixas, é que os médicos acabam por se dedicar a tentar perceber a doença.
Em que altura deste processo decidiu criar a página “o meu útero”?
Eu descobri que tinha adenomiose antes de ter endometriose. Foi nessa altura que decidi criar a página “o meu útero”, mesmo antes de ter a confirmação do diagnóstico de endometriose.
O objetivo era chegar a outras mulheres que tinham queixas semelhantes e que não faziam ideia de que podiam ter uma doença. A prevalência da endometriose é alta e, ao mesmo tempo, as dores menstruais são tão normalizadas que chocou-me o facto de não se falar desta doença.
Por outro lado, também foi uma tentativa de desmistificar um pouco o tema, porque também sentia que havia muita vergonha associada ao tema da endometriose, por ser uma questão que mexe com temas íntimos como a infertilidade ou a sexualidade. No fundo, tentei trazer alguma leveza ao tema sem lhe tirar a seriedade que ele merece.
E a escrita do livro “Dores Menstruais Não São Normais” surge nesse sentido de desmistificar a doença?
Sim. Existe uma secção no livro sobre mitos muito comuns, mas, ao longo de todo o livro, vou tocando em ideias pré-concebidas sobre a menstruação e a endometriose. Um dos principais mitos, além da questão da infertilidade, é o de que só as mulheres mais velhas podem ter endometriose. Outro mito é que se as dores menstruais não forem muito fortes a pessoa não tem endometriose.
Além disso, algumas pessoas associam a toma da pílula à endometriose, porque quando pararam de a tomar descobriram que tinham a doença. Por isso, acreditam que foi a pílula que causou a endometriose, e isso não é verdade. O que acontece é que a pílula pode mascarar os sintomas da endometriose e, quando se interrompe a toma, a doença faz-se sentir.
Quais as lições mais importantes que aprendeu ao longo destes anos com a criação da página e também com a escrita deste livro?
O que eu acho mais curioso é que, muitas vezes, me chegam relatos e testemunhos que não encontram ainda explicação na ciência. Mesmo para os médicos, há muitas situações que ainda são um quebra-cabeças. Ter contacto direto com pessoas que me expõem estas situações mostra-me que é preciso estudar mais a doença. O facto de não se saber assim tanto sobre a doença, nomeadamente sobre as suas causas, foi a principal aprendizagem. Por isso é que defendo que precisamos de políticas de investimento em estudos e em investigação científica sobre o tema.
Desde a criação da página até hoje, nota mudanças no destaque dado à endometriose, nomeadamente nos meios de comunicação social?
Sim, há mudanças. Creio que isso é algo natural, sobretudo porque mais celebridades têm vindo a falar do seu caso particular, tanto em Portugal quanto internacionalmente. Para mim, o caso da Anitta é o mais flagrante dos últimos tempos, porque ela veio falar com a revolta de quem esteve anos a não perceber o que não se passava com a sua saúde e, finalmente, obteve uma resposta.
Depois, também acho que os interesses das audiências e o consumo de conteúdos nas redes sociais mudaram. Ao contrário do que acontecia há cinco anos, neste momento, há mais interesse em falar sobre o período e sobre a saúde sexual, o que está também relacionado com a endometriose.
E há hoje menos tabus sobre estes temas?
Essa pergunta é difícil de responder. Eu teria tendência a dizer que sim, mas eu estou um pouco dentro de uma bolha. Creio que continua a haver demasiados tabus para o que deveria existir.
O que é que a sociedade pode fazer pelas pessoas com endometriose?
É necessário adaptar as políticas públicas a estas mulheres, sobretudo através de comparticipação de medicação, formação de profissionais que estejam trabalhar no atendimento urgente dos hospitais, nomeadamente os médicos de família.
Esta formação não deve estar circunscrita a ginecologistas, porque há muitos sintomas – intestinais e urinários, por exemplo – que não estão diretamente relacionados com a menstruação. É mesmo preciso haver uma sensibilidade holística para ser possível encurtar o tempo de diagnóstico das mulheres. Ao mesmo tempo, é preciso dar-lhes acesso a medicação e a tratamentos dignos.
Em Portugal, muita da medicação para a endometriose não é comparticipada. Por exemplo, a pílula é uma forma eficaz de controlar os sintomas e existe uma pílula específica para a endometriose. Só que esta pílula custa 50 euros por mês. Existe agora no mercado uma alternativa, mas custa 25 euros. É metade do preço, mas continua a ser um valor muito elevado para a maior parte das pessoas.
Além disso, é muito difícil conseguir aceder a consultas para despiste de endometriose e exames através do setor público, ou seja, de forma gratuita. E no setor privado uma consulta pode chegar aos 150 euros. Estamos perante custos que a esmagadora maioria das pessoas não pode suportar.
Por isso, precisamos de políticas públicas que facilitem a vida destas pessoas que têm uma doença crónica com sintomas que destroem a vida a uma pessoa.
A licença menstrual poderá ser uma mais-valia?
O tema da licença menstrual é um pouco cinzento. Acredito que quem merece a licença menstrual é quem, de facto, tem uma doença associada ao período. Porquê? Porque, caso contrário, isso normaliza a dor menstrual. No fundo, diz às mulheres que está tudo bem se tiverem a menstruação e tiverem dores, porque isso acontece. O “tudo bem, isso acontece” devia ser tirado da equação e deveria ser substituído por: “podes ter alguma doença e devias ir ver isso”.
Assim sendo, creio que a licença menstrual deveria chegar depois de haver mais informação sobre diagnóstico à endometriose. Este assunto só agora começa a ganhar tração, e precisamos de fazer chegar os diagnósticos a quem tem a doença, antes de pensarmos na licença menstrual.
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