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Entrevistas

Carmo Bastos e a Parkinson precoce: “A guerra interior é tentar que não me afete psicologicamente”

11 Abr 2023 - 11:30

Carmo Bastos e a Parkinson precoce: “A guerra interior é tentar que não me afete psicologicamente”

Jovens, ativos, profissionalmente no auge da carreira e com uma vida familiar que inclui, muitas vezes, filhos pequenos a necessitar de toda a atenção. Este é o resumo da vida de muitas pessoas com menos de 50 anos, e a última coisa que lhes passa pela cabeça é serem diagnosticados com Doença de Parkinson, aquela doença associada aos tremores nos mais velhos.

Este é também o resumo da vida de Carmo Bastos. No Dia Mundial da Doença de Parkinson, o Viral entrevista esta mãe de três filhos, com uma posição de direção numa instituição bancária e atleta federada em ténis, que aos 44 anos recebeu o diagnóstico de Parkinson precoce.

Até essa altura, Carmo Bastos só conhecia o caso de Michel J. Fox, diagnosticado com a doença aos 29 anos. Assim que soube que tinha Doença de Parkinson, sentiu uma necessidade imperiosa de saber mais, de procurar mais informação, formas de melhorar a qualidade de vida e retardar a progressão dos sintomas. O facto é que encontrou pouca coisa, um vazio que decidiu colmatar, em conjunto com outros doentes, criando a associação Young Parkies, da qual é hoje presidente.

Como era a sua vida antes de receber o diagnóstico de Doença de Parkinson aos 44 anos?

Tinha uma vida muito preenchida e muito tradicional. Sou casada, mãe de três filhos, trabalho na banca há 25 anos e sempre fiz desporto. Uma vida considerada normal.

Sou federada em ténis desde miúda. Parei alguns anos, entre os 16/17 anos e os 30 e poucos anos, mas depois voltei, sou novamente federada e jogo nos campeonatos de ténis de veteranos.

Quando começou a sentir que algo não estava bem consigo? Que sintomas despertaram a sua atenção?

Olhando em retrospetiva, cerca de um ano e meio ou dois anos antes do diagnóstico, comecei a reparar que tinha mais dificuldades em lavar os dentes com a mão direita, que é a minha mão dominante, a minha caligrafia começou a ficar mais pequena e tinha dificuldade em apertar alguns botões. Sentia algumas alterações sobretudo na motricidade mais fina.

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Foram situações que começaram a surgir progressivamente, mas não dei grande valorização. Como tinha recomeçado a jogar ténis de forma mais regular, achei que podia ser um tennis elbow ou uma tendinite. Como sou muito relaxada, não fui a correr para o médico.

Quando os sintomas começaram a acumular-se, senti que devia investigar. Nunca pensei que fosse uma situação neurológica, mas que poderia ser alguma coisa mais séria, não grave, mas que começasse a estar mais instalada.

Fiz o percurso que muitas pessoas fazem: fui ao ortopedista, fiz alguns exames e, depois dos exames, fui ao fisiatra. Este processo demorou mais ou menos um ano. Entretanto, o fisiatra que me seguia disse-me que suspeitava tratar-se de Doença de Parkinson e aconselhou-me a ver um neurologista especialista em doenças do movimento.

Quando o fisiatra lhe apontou essa hipótese, já tinha ouvido falar da Doença de Parkinson, que é uma patologia associada a pessoas mais velhas. Achou que podia ser mesmo sério ou que não podia ser o seu caso, pois só tinha 44 anos?

Achei mesmo que podia ser sério. Sou filha de dois pais médicos e eles até desvalorizaram esse pré-diagnóstico, mas eu não. Já era acompanhada por esse fisiatra há cerca de um ano e pela forma como ele falou comigo percebi que não era apenas uma suspeita.

Para mim, foi uma surpresa total porque, tirando o Michael J. Fox, não conhecia ninguém da minha idade que tivesse a Doença de Parkinson.

A reação dos seus pais, mesmo médicos, diz muito daquilo que se desconhece sobre a doença. Como a maioria dos doentes é diagnosticada numa fase mais avançada da vida, os doentes com Doença de Parkinson precoce demoram meses, alguns mesmo anos, até terem o diagnóstico correto…

Ainda hoje, passados cerca de cinco anos do diagnóstico, não tenho tremores, que é o sintoma mais associado à doença. O que tenho é rigidez muscular, alguma lentidão de movimentos, alguma dificuldade nos movimentos finos. São sintomas muito frequentes na Doença de Parkinson precoce, mas as pessoas não associam muito à patologia.

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Quando procurou o neurologista especialista em doenças do movimento, ele já tinha acompanhado pessoas nesta faixa etária?

A médica que me fez o diagnóstico no Hospital de S. João, no Porto, era muito experiente e, após o exame clínico, validou de imediato o diagnóstico.

Desde que comecei a procurar ajuda médica para perceber o que tinha até ter o diagnóstico correto e final, passou mais de um ano, o que até é pouco tempo, comparando com outros casos.

Como reagiu quando recebeu o diagnóstico? Ficou aliviada por saber finalmente o que explicava os sintomas ou ficou preocupada com o diagnóstico?

As duas coisas. Para a minha personalidade, a indefinição e a ignorância é sempre pior do que qualquer certeza. E, admito, fiquei satisfeita por finalmente ter um diagnóstico final. A partir daí, tinha a possibilidade de procurar informação e profissionais que me pudessem ajudar a orientar para uma situação específica e perfeitamente identificada.

Por outro lado, com três filhos pequenos – na altura com 10, 13 e 15 anos – e com uma vida profissional ativa, claro que fiquei preocupadíssima, sobretudo pela variabilidade da evolução da doença, porque não há um padrão de evolução [igual para todos os doentes].

O principal medo de qualquer pessoa é a eventual perda de autonomia. A minha principal preocupação foi pensar como é que eu ia resolver uma eventual perda de autonomia.

Qual foi a reação dos seus pais ao diagnóstico, sendo eles médicos?

É daquelas situações em que deixam de ser médicos e passam apenas a ser pais. É uma preocupação. Eventualmente, questionaram: “porquê ela e não eu?”.

Mas depois também depende muito da reação do próprio doente à doença. Tentei passar um sentimento e uma mensagem de tranquilidade e segurança. E a preocupação mais latente dos primeiros tempos – que eles também tinham e tenho a certeza de que não a partilharam totalmente comigo – foi-se desvanecendo com o retomar da vida normal.

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Que alterações teve de fazer na rotina pessoal, familiar e profissional?

Inicialmente, pensei que não devia fazer nada e não fiz. Aliás, nem contei logo aos meus filhos, que hoje têm 19, 17 e 14 anos. Só contei passado algum tempo.

Quis perceber primeiro como é que a doença ia evoluir no curto prazo, num ano ou dois, antes de lhes contar e continuar a fazer a minha vida normal.

Havia apenas um pequeno grupo de pessoas que sabia – quer no banco onde trabalho, quer na família, quer no grupo de amigos – protegi-me dessa forma e continuei a fazer tudo igual.

Ao fim de um ano e pouco, decidi que realmente tinha de desacelerar um pouco. Tinha um cargo de chefia no banco onde trabalho e falei com a pessoa a quem reportava para deixar de ter a gestão de equipa. 

Era essencial ter menos stress, que é o principal indutor da evolução dos sintomas, e ter mais tempo para mim, ter mais tempo para fazer mais desporto e fazer mais fisioterapia e para todas as atividades que julgo serem benéficas para a minha evolução a longo prazo.

E o que faz nessas atividades para melhorar o prognóstico a longo prazo?

Continuo a jogar ténis em torneios de veteranos, faço pilates clínico, faço ioga, jogo padel. Continuo a trabalhar e a tentar criar os meus filhos da melhor maneira possível.

Sente que o desporto tem sido importante neste processo?

Sim, aliás, o exercício físico é o único ponto em que há uma validação científica generalizada como sendo uma atividade que, de facto, tem a capacidade de atrasar a evolução dos sintomas, nomeadamente o exercício aeróbico.

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Dentro de uma doença em que ainda há muito por descobrir, esta é uma conclusão que é totalmente aceite na comunidade científica e também é muito estudado que o desporto tem um efeito sobre a saúde mental muito positivo e é um aliado totalmente imprescindível.

Tento agarrar-me a isso e tenho a sorte de gostar de fazer desporto. Depois tentar levar uma vida o mais saudável possível, a nível do sono e da alimentação.

Em termos de capacidades, o que sente que já perdeu, que já não consegue fazer ou tem mais dificuldades?

Faz parte do processo de aceitação da doença. No fundo é o processo natural do envelhecimento, mas um bocadinho mais rápido. Por mais que façamos o envelhecimento é inevitável. Neste caso, é a mesma coisa, porque sabemos que os sintomas vão continuar a progredir, mas temos de tentar atrasá-los.

Hoje tenho imensa dificuldade em cortar um bife, tenho uma lentidão de movimentos que me fez mudar para um carro de mudanças automáticas. A perna direita também arrasta um pouco e tenho de estar atenta para não provocar nenhuma queda. 

São pequenas coisas que mostram alguma limitação que temos de aprender a gerir e tentar que essas limitações não nos afetem, sobretudo psicologicamente.

A guerra interior é sempre essa, tentar que não me afete psicologicamente, que seja parte de um processo que encare como natural e no qual tenho de fazer o meu papel para tentar atrasar o mais possível.

Essa é uma visão da doença pela mente de uma atleta: o superar as limitações que vão aparecendo pelo caminho…

Não tenho dúvida que a cultura do ténis, por ser um desporto individual em que a pessoa vai para dentro do court sozinha e tem de ir resolvendo os problemas que forem surgindo ao longo do jogo, dá uma capacidade de resiliência e de adaptabilidade muito elevada. Não tenho dúvida nenhuma que contribuiu muito para a forma com que fiz a abordagem à doença.

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Depois do diagnóstico e de ter começado a partilhar a sua condição, em que momento começou a pensar criar uma associação dirigida apenas a pessoas com Doença de Parkinson abaixo dos 50 anos?

Foi um percurso muito natural. Após o diagnóstico, comecei – como a grande maioria das pessoas – a procurar informação, nomeadamente sobre Parkinson precoce. Fui percebendo que havia pouca informação e em português havia mesmo muito pouco. Até as organizações que já existiam, e que fazem um trabalho muito válido, estavam completamente viradas para o Parkinson sénior e sentia que não me enquadrava naquele contexto.

Por ter acesso mais fácil a médicos, comecei a falar com médicos, com fisioterapeutas, com investigadores e as coisas foram surgindo muito naturalmente durante a pandemia. 

De repente, tínhamos um núcleo – eu e outro doente, o Rui Couto, uma fisioterapeuta, um neurologista e um investigador – e começámos a criar esta ideia de ter uma associação em Portugal dedicada aos cerca de três mil doentes que têm Doença de Parkinson diagnosticada antes dos 50 anos.

Fomos trabalhando para ver qual seria a nossa abordagem, o que seria mais importante e foi um processo muito natural que demorou cerca de um ano desde que começámos a falar até que criámos a associação juridicamente em julho de 2021 e iniciámos a atividade pública em janeiro de 2022.

Nesse processo de construção da associação, ganharam maior noção da dimensão desta questão em Portugal. Sendo uma condição incomum, não é tão rara como pensavam. Tinham noção que havia esse número de doentes?

Não tínhamos mesmo e essa falta de noção do número de doentes que existem em Portugal ainda foi mais notória depois do lançamento público da associação. Em muito pouco tempo, chegámos aos 120 associados e hoje contamos com perto de 250.

De repente, tinha pessoas próximas que me ligavam a dizer que tinham um primo ou um colega de trabalho que tinha a doença, gente que até estava num raio de ação próximo, alguns até conhecia, mas não sabia que tinham a doença.

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Ter vindo para a praça pública teve impacto. De repente surgiu muita gente com a doença diagnosticada porque as pessoas ficaram confortáveis para falar do assunto.

Antes da Young Parkies sentiam-se desconfortáveis pelo estigma de ser uma doença mais associada a idades mais avançadas? Muitos doentes com Doença de Parkinson precoce, por estarem numa altura de vida muito ativa, têm receio de tornar a sua condição conhecida?

Sem dúvida alguma. E a parte profissional é a mais visada nesse aspeto, nessa tentativa de esconder o diagnóstico.

De facto, como há pouco conhecimento da doença nesta idade, os doentes têm medo das reações das pessoas, das hierarquias, dos colegas de trabalho, de começarem a não ser considerados para determinado cargo ou projeto por terem a doença, medo de que os possam despedir ou retirar os seguros.

Há uma panóplia de questões satélite que têm impacto e que muitas vezes decorrem de falta de informação, do próprio e de quem os rodeia. Esse é um trabalho [de esclarecimento] que a associação tem de fazer, mas os doentes também têm de estar disponíveis para serem agentes nessa mudança. No fundo são pivôs espalhados pelo país todo que, ao promoverem a conversa sobre o assunto de uma forma construtiva, conseguem chegar a muita gente diferente.

Quais são as principais necessidades das pessoas com Parkinson abaixo dos 50 anos que a Young Parkies já identificou?

Diria que são basicamente três. Uma é a que mais senti quando tive o diagnóstico: a falta de informação. Tentamos colmatar esta situação com a informação que disponibilizamos na página da associação, com os webinares que fazemos, com as atividades de divulgação em que participamos.

Outra necessidade identificada é criar uma comunidade onde as pessoas desenvolvam o sentido de pertença, se sintam integradas e possam partilhar as suas inquietações, as suas inseguranças, dúvidas e alegrias. 

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Há uma empatia praticamente imediata entre as pessoas com Parkinson precoce porque os sintomas não variam assim tanto de pessoa para pessoa e como há uma grande diversidade de sintomas não motores que não são visíveis às pessoas que nos rodeiam, quando são partilhados entre as pessoas com a mesma condição são compreendidos de uma forma muito fácil e empática.

Por fim, tentamos também agilizar uma cooperação entre todos os intervenientes que rodeiam o doente com Parkinson. Sentimos que há uma falta de cooperação entre os médicos, os investigadores, os psicólogos, os fisioterapeutas e os próprios doentes e familiares. Todos estes players têm de falar entre si, têm de se educar uns aos outros e têm de perceber as necessidades de cada um.

Um investigador tem de conseguir falar com os doentes para, por exemplo, saber como conduzir uma investigação. Há a investigação para a cura e a investigação para a melhoria da qualidade de vida. Nesta última, é necessário ter o feedback dos doentes sobre o que consideram como sendo os maiores entraves na qualidade de vida e tentar melhorar esses entraves.

É muito importante que toda a comunidade fale e coopere para que os doentes tenham a melhor qualidade de vida em cada momento.

Por exemplo, alguns depoimentos na vossa página são de mulheres diagnosticadas em idade fértil que podem até querer ser mães. Há, de facto, ainda muito por descobrir na doença em si e neste grupo específico abaixo dos 50 anos ainda mais?

A literacia na doença é um vetor essencial. A parentalidade, seja maternidade ou paternidade, é muito importante. Todo o processo de gravidez, de amamentação são assuntos muito importantes e sobre os quais existem muitas dúvidas e muita informação cruzada que nem sempre é credível.

Tentamos, através da nossa página e dos webinars mensais que fazemos, ir abordando todos esses temas de forma a que as pessoas tenham a melhor qualidade de informação possível. Por exemplo, um dos nossos sócios fundadores foi pai pela quinta vez há 15 dias.

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A doença é um tema que condiciona a vida e o bem-estar entre os casais e tem um impacto enorme.

É uma associação muito recente que já tem algumas metas alcançadas. Que objetivos têm para um futuro mais imediato?

Recentemente, fomos admitidos na Plataforma Saúde em Diálogo, que pretende fomentar a partilha do conhecimento e das estratégias de cada associação e juntar forças para trabalhar alguns temas de índole mais cívica e política.

Neste ano de atividade, ainda não tivemos oportunidade de estabelecer protocolos com outras associações de doenças do movimento, mas é um caminho que queremos percorrer, estabelecendo parcerias mais formais com outras associações nacionais e internacionais.

Queremos continuar a crescer com atividades na área da nutrição, do exercício, do bem-estar e do apoio psicológico que estamos a fomentar em parceria com a associação Encontrar+se.

Organizámos em março passado o primeiro curso de fisioterapia especializada em doentes de Parkinson para fisioterapeutas e profissionais do exercício, que foi uma atividade apoiada pela Sociedade Portuguesa de Doenças do Movimento.

Sentimos que há uma lacuna muito grande na referenciação de médicos para fisioterapeutas com prática e especialização no acompanhamento de doentes com Parkinson precoce e pretendemos com estes cursos – vamos fazer outra edição em novembro próximo – criar uma rede nacional de fisioterapeutas com selo Young Parkies disponível na nossa página para os doentes consultarem e para que os médicos possam sentir-se confortáveis em referenciar para estes profissionais.

A nossa ideia é poder dar os instrumentos às pessoas com Doença de Parkinson precoce para terem uma vida ativa e perfeitamente integrada na sociedade.

Categorias:

Neurologia

11 Abr 2023 - 11:30

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