Suprimir emoções pode causar perda de memória? O que diz a evidência
É possível que tenha bem presente na memória os acontecimentos que mais marcaram a sua vida até ao momento. Isto acontece porque as situações que provocam emoções mais intensas, sejam elas positivas ou negativas, transformam-se, muitas vezes, em memórias consolidadas. No TikTok, partilham-se vários vídeos em que se alega que “suprimir emoções pode causar perda de memória”. Será mesmo assim? Qual o impacto das emoções na memória?
A supressão de emoções tem impacto na memória?
Em esclarecimentos ao Viral, Filipa Caetano, psiquiatra e psicoterapeuta cognitivo-comportamental, começa por adiantar que suprimir as emoções “não causa perda de memória” de uma forma direta.
O que acontece é que a frequente supressão de emoções pode levar a quadros clínicos que têm impacto na consolidação e formação de memórias (ver aqui, aqui e aqui).
Filipa Caetano explica que “as emoções são muito importantes no processamento da memória”.
Aliás, prossegue, “todos nós já notamos que, se tivermos um acontecimento nas nossas vidas associado a emoções muito intensas – seja alegria muito intensa, como o nascimento de um filho, ou uma tristeza muito grande, como um falecimento de alguém que nos é próximo -, esses eventos parecem ficar mais nítidos na nossa memória” (ver também aqui).
Isso acontece “porque há uma estrutura do nosso cérebro, a amígdala, que se ativa durante essas vivências e faz com que as memórias sejam processadas mais nitidamente pelo hipocampo (a estrutura responsável pela memória)”, justifica.
Assim, por norma, “eventos carregados de emoção, seja ela muito positiva ou muito negativa, ficam mais presentes na nossa memória”, o que comprova esta “ligação entre estados emocionais e memória”.
Quando alguém “tenta esconder ou não mostrar” o que está a sentir, sobretudo se forem “emoções muito intensas”, isso “pode causar um mal-estar emocional”, realça a psiquiatra.
Tal como se explica num texto informativo publicado no site do Centro Médico Académico de Kansas, nos Estados Unidos, neste contexto, “o nosso cérebro pode frequentemente entrar em estado de luta ou fuga”.
Esta é uma reação física ao stress “que desencadeia uma cadeia de acontecimentos no nosso corpo”, isto é, “aumenta o nosso ritmo cardíaco, abranda as funções digestivas e faz-nos sentir ansiosos ou deprimidos”, explica-se no mesmo texto.
Quando este mecanismo de ação se torna um hábito, pode “quadros de ansiedade ou depressivos”, salienta Filipa Caetano. E essas condições, sim, sabe-se que “afetam as memórias”, salienta (ver também aqui, aqui, aqui, aqui e aqui).
Segundo Filipa Caetano, uma das queixas mais recorrentes em consulta é precisamente a perda de memória. “A ansiedade, sobretudo, afeta muito a atenção” e, por conseguinte, “a memória fica mais danificada”.
Isto não significa que nunca se deve tentar diminuir as emoções negativas. Na perspetiva da psiquiatra, “faz parte de uma expressão emocional saudável” haver uma gestão dessas emoções.
A especialista dá um exemplo: “Eu estou no trabalho, a dar uma consulta, mas há alguma coisa que me está a preocupar. Se não for uma situação muito grave, eu posso tentar, naquele momento, adiar o assunto, fazer a consulta e depois reservar um momento para processar estas emoções”.
O problema é quando as emoções são suprimidas constantemente e não se reserva tempo para que elas sejam processadas, algo comum em pessoas que tiveram experiências traumáticas.
“Uma pessoa que teve uma infância traumática, pode ter adotado essa estratégia desde cedo para, de certa forma, sobreviver a essa infância”, exemplifica a médica.
No futuro, se lhe perguntamos como foi essa fase de vida, “às vezes, as memórias são um pouco dispersas, porque a pessoa reprimiu tanto as emoções e alterou tanto o estado mental, que as memórias não ficaram bem consolidadas”, explica.
Aliás, ao que tudo indica, as memórias negativas relacionadas com um evento traumático não são as únicas que ficam comprometidas.
Um artigo de 2016, publicado na Nature, dá conta de que “os défices de memória acompanham frequentemente as perturbações de stress agudas e pós-traumáticas, mesmo no caso de memórias neutras não relacionadas com o trauma”.
Qual a importância de lidar com as emoções?
Exprimir as emoções e lidar com elas é importante, sobretudo, para a manutenção da saúde mental. Fazê-lo sempre que possível permite “prevenir o isolamento social e os quadros depressivos ou ansiosos”, adianta Filipa Caetano.
Dependendo do que a pessoa gosta de fazer, “falar com alguém, escrever e meditar” são algumas das estratégias que podem ajudar a lidar com as emoções.
Por vezes, essas estratégias podem não ser suficientes. Quando uma pessoa tem a sensação constante de que “as emoções que sente são muito intensas, mas não as conseguir exprimir e isso gera um quadro de ansiedade”, pode estar na altura de procurar ajuda especializada.
O mesmo serve para as pessoas que não conseguem fazer o adiamento para processar as emoções. Ou seja, “se isso começa a acontecer todos os dias com uma frequência maior e se começa a afetar o trabalho, se começamos a irritar-nos com os nossos familiares ou amigos, eu diria que está na altura de procurar ajuda”, defende.