Resistência a antibióticos: Um problema crescente sem solução? O que dizem os especialistas
Segundo os últimos dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2019, a resistência antimicrobiana (RAM) (vulgarmente conhecida como resistência a antibióticos) foi diretamente responsável pela morte de 1,27 milhões de pessoas e contribuiu para 4,95 milhões de mortes.
Um estudo recente, publicado em setembro deste ano na revista The Lancet, prevê um aumento alarmante: em 2050 haverá 1,91 milhões de mortes anuais por RAM e 8,22 mortes associadas. No total, de 2025 a 2050, estima-se que possam ocorrer 39,1 milhões de mortes causadas pela resistência a antibióticos e 169 milhões de mortes associadas a este problema. A que se deve este aumento? É possível controlar a situação?
Para esclarecer estas questões, o Viral contactou dois especialistas.
O que leva à resistência aos antibióticos?
Antes de mais, importa explicar que a resistência antimicrobiana é a capacidade de certos microrganismos (como, por exemplo, as bactérias) resistirem aos medicamentos que normalmente os matariam ou inibiriam.
Nesse sentido, explica António Sarmento, diretor do Serviço de Doenças Infecciosas do Centro Hospitalar Universitário de São João (CHUSJ) e professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP) esclarece, em declarações ao Viral, que “a resistência das bactérias aos antibióticos sempre existiu”.
Aliás, prossegue, “muito antes de o homem usar antibióticos, já se sabia que as bactérias tinham mecanismos de resistência”.
O que aconteceu foi que, “quando a ameaça se tornou global”, ou seja, “quando as bactérias passaram a ser ameaçadas pelos antibióticos”, começaram a “transmitir informação umas às outras”, partilhando genes que as tornam resistentes.
No fundo, esclarece João Perdigão, professor da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa (FFUL) e investigador na área da microbiologia clínica e epidemiologia molecular de doenças infecciosas, o uso de antibióticos no geral “vai levar inevitavelmente ao aparecimento e emergência de estirpes que são resistentes”.
Isto não quer dizer que deixar de usar antibióticos seja a solução, até porque “a resistência aos antibióticos não se prende apenas com a utilização” destes medicamentos, salienta António Sarmento.
Além disso, concordam os dois especialistas, os antibióticos são medicamentos indispensáveis e insubstituíveis em alguns contextos.
“Se não existissem antibióticos, muita gente teria morrido, quer em consequência de infeções, quer na impossibilidade de fazer determinadas cirurgias ou intervenções”, defende António Sarmento.
Atualmente, acrescenta, “é impossível fazer um transplante hepático, cardíaco, ou de medula sem antibióticos”.
Porque é que a resistência aos antibióticos é um problema crescente?
Não há uma resposta simples e direta. No entanto, na perspetiva dos dois especialistas contactados pelo Viral, existem cinco principais fatores que estão a contribuir para o impacto atual da resistência aos antibióticos na saúde.
1) Falta de novas classes de antibióticos
João Perdigão começa por explicar que, quando se criaram os primeiros antibióticos, há quase 100 anos, viveu-se, “durante décadas, uma espécie de era de ouro na descoberta de novos antibióticos e estes fármacos eram produzidos e chegavam ao mercado a uma velocidade maior”.
Hoje, o cenário “é mais complicado”. Tal como explica o investigador, “as fontes têm-se vindo a esgotar e o desenvolvimento de novos antibióticos exige que se recorra a processos de síntese química que são cada vez mais complexos e dispendiosos”.
Por esse motivo, desenvolver antibióticos atualmente “é um processo muito mais moroso”. Este problema não é novo, mas “tem vindo a crescer” e a refletir-se.
Segundo João Perdigão, “o que existe, sobretudo, é a falta de novas classes de antibióticos”.
Por exemplo, refere, “desde 2013, foram aprovados cerca de 19 fármacos com atividade antibacteriana”. O problema é que “nenhum deles corresponde efetivamente a uma nova classe de antibióticos”.
O facto de não serem “completamente novos em termos químicos limita o espetro de atividade que estas novas moléculas têm”, traduzindo-se num problema quando o objetivo é combater e evitar novas resistências.
2) Falta de condições higiénicas dos hospitais a nível global
Tal como é sugerido no estudo publicado na revista The Lancet, refere António Sarmento, “os países com mais resistência aos antibióticos são países pobres, com hospitais e centros de saúde com condições higiénicas péssimas e onde há poucos antibióticos”.
Estes dados permitem perceber que a falta de “higiene adequada das instalações hospitalares é um fator importantíssimo para as bactérias transmitirem resistências de umas para as outras”, assinala o médico.
3) Prescrição inadequada de antibióticos
Outro motivo que também contribui para o aumento da resistência aos antibióticos, mas que “varia muito consoante a localização geográfica”, é o “excesso de prescrição antibiótica” e a “prescrição inadequada”, assinala João Perdigão.
De facto, prossegue, “existe sempre uma maior prevalência de bactérias resistentes a nível hospitalar, porque é também lá que os antibióticos são usados em maior quantidade”.
Contudo, na perspetiva de António Sarmento, a decisão de receitar ou não receitar um antibiótico nem sempre é fácil.
“Deve-se tentar que os antibióticos sejam usados com o maior critério, isto é, se eu acho que o doente precisa mesmo do antibiótico, tenho de ter conhecimentos suficientes para ter essa segurança de que ele precisa do medicamento e não posso deixar de lhe prescrever”, sustenta.
Por outro lado, também é importante perceber quando não é necessário prescrever um antibiótico, mas, claro, “nunca pondo em risco a vida do doente, em nome da prevenção”, aponta.
Por isso é que “a formação dentro dos hospitais é tão importante”, defende António Sarmento.
O professor da FMUP considera que “os médicos têm tido cada vez mais a noção” deste problema e que “os hospitais têm cada vez mais preocupação em ter serviços de controlo de infeção”. Apesar disso, “o número de médicos e de enfermeiros dedicados ao controlo da infeção é ainda muito baixo”.
4) Uso inadequado de antibióticos
Para António Sarmento é importante que os doentes percebam que “os antibióticos, se dados sem necessidade, são prejudiciais não só para a ecologia do meio, como para o próprio doente”.
Segundo João Perdigão, “a toma de antibióticos sem receita médica é desaconselhada”. Além disso, é de extrema importância que, em caso de prescrição, se cumpra “a terapêutica até ao fim, tal como prescrita pelo clínico”, porque “a toma intermitente, de alguma forma, também favorece a aquisição de resistência”.
Na perspetiva de António Sarmento, é essencial promover a “literacia em saúde” para que as pessoas estejam “cientes de que esta preocupação existe”, de que o uso inadequado de antibióticos é um problema.
5) Utilização de antibióticos na agropecuária
Por norma, olha-se para o problema da resistência aos antibióticos “exclusivamente de uma perspetiva da saúde humana”, informa João Perdigão.
Contudo, sobretudo nos últimos anos, é fundamental “olhar sob a perspetiva de uma só saúde”, já que “os antibióticos não são usados só na saúde humana, são também na saúde animal”, esclarece.
Aliás, salienta, “a quantidade de antibióticos usados em saúde animal e na saúde humana é muito aproximada”.
Apesar “de haver antibióticos reservados para uso veterinário e outros reservados para uso humano, o problema é que, na sua essência, eles pertencem às mesmas classes”.
Isto quer dizer que, no fundo, “a pressão seletiva acaba por ser a mesma”, ou seja, “muitas vezes, nós, seres humanos, temos contacto com essas bactérias resistentes dos animais de produção de alimento, podendo ser uma via possível de infeção”, explica.
Além disso, aponta António Sarmento, em alguns países, como nos Estados Unidos, ainda se adiciona antibióticos às rações dos animais sem fins terapêuticos.
Ainda é possível controlar o problema? O que está a ser feito e o que falta fazer
Na perspetiva dos dois especialistas, não é impossível contornar o problema, desde que se continue a agir no sentido de criar novos medicamentos e terapêuticas e, também, que se atue de uma perspetiva preventiva.
Em relação aos fármacos, apesar de “os processos agora serem mais morosos, os antibióticos continuam a ser desenvolvidos”, refere João Perdigão.
Tal como já tinha referido o investigador, “desde 2013 foram aprovados e chegaram ao mercado 19 novos antibióticos”.
Além disso, “também vão aparecendo novas combinações de antibióticos, nomeadamente betalactâmicos, com inibidores das enzimas que conferem resistência”, adianta.
O exemplo mais comum. e que a maior parte das pessoas conhece. “é a amoxicilina com ácido clavulânico”, aponta.
Também estão a ser desenvolvidas outras terapêuticas. Inclusive, exemplifica, está a estudar-se a “terapia fágica, usando bacteriófagos, que são vírus que infetam bactérias”.
A estas inovações devem-se aliar-se medidas preventivas. É fundamental “assumir a saúde como prioridade global”, defende António Sarmento.
Uma das medidas mais importantes, segundo o especialista, é “dar melhores condições aos hospitais”, seja a nível de “limpeza”, de “espaço”, de formação dos profissionais e, em alguns casos, “de condições sanitárias”.
Para o infecciologista, “quanto melhor for a qualidade dos cuidados de saúde, menor vai ser o problema da resistência aos antibióticos”.
“Se um hospital tiver meios para diagnosticar, tratar e dar alta rapidamente aos doentes, os dias de hospitalização diminuem brutalmente”, o que, por consequência, “diminui as infeções e as transmissões de resistência de umas bactérias para outras”, sustenta.
Importa ainda realçar, na perspetiva dos especialistas, a importância da vacinação. “Tudo o que puder ser prevenido por vacina, deve ser prevenido por vacina”, defende.