O “Mercúrio retrógrado” prejudica a nossa saúde? Não, mas acreditar nisso pode afetá-la
Um telemóvel estragado, o fim de uma relação ou um problema de saúde inesperado são inconvenientes que podem acontecer em qualquer altura, mas que, muitas vezes, são apresentados nas redes sociais como culpa dos astros, sobretudo se acontecerem nas três vezes por ano em que se “instala” o chamado “Mercúrio retrógrado”.
Para quem acredita em astrologia, o movimento aparentemente retrógrado do planeta Mercúrio em determinadas alturas do ano está associado a uma série de fenómenos que incluem mal-entendidos, falhas na comunicação, atrasos, problemas tecnológicos e até problemas de saúde.
No TikTok, por exemplo, uma astróloga mostra um papo que lhe surgiu no olho e atribui a causa deste acontecimento ao facto de, supostamente, “Mercúrio estar retrógrado em Virgem”. Mas o que é, afinal, o “Mercúrio retrógrado”? E este “fenómeno” tem alguma influência na nossa saúde? Uma astrónoma e um médico e professor universitário respondem.
O que é o “Mercúrio retrógrado”?
Em declarações ao Viral, Ana Rita Silva, astrónoma e criadora da página astrophda.rita, adianta que o chamado “Mercúrio retrógrado” não corresponde a um fenómeno em que este planeta começa a “andar para trás”, mas sim a uma “ilusão ótica” relacionada com a diferença das velocidades a que a Terra e Mercúrio giram à volta do sol.
A astrónoma consultada pelo Viral começa por explicar que, no Sistema Solar, “todos os planetas andam à volta do Sol” (movimento de translação), mas a velocidades e distâncias diferentes. Enquanto a Terra, que está mais distante do Sol, demora 365 dias a dar uma volta ao Sol, Mercúrio, que está mais próximo, demora cerca de 88 dias a completar o seu movimento de translação.
Assim sendo, esclarece a astrónoma, se todos os dias olharmos para o céu e observarmos a posição de Mercúrio em relação a outros corpos celestes (como, por exemplo, uma constelação), haverá dias em que nos parece que este planeta se está a mover “de um lado para o outro” e dias em que parece que se está a mover no sentido contrário.
Esta inversão no movimento, reforça, é apenas aparente: “Mercúrio está só a seguir a sua órbita normal à volta do Sol. A questão é que, quando Mercúrio está do mesmo lado do Sol que a Terra, parece que tem um movimento de um lado para o outro e, quando vai para o outro lado do Sol, parece que inverteu o sentido”.
Por isso, sublinha Ana Rita Silva, Mercúrio “continua a fazer o mesmo movimento na sua órbita circular à volta do Sol, sempre a rodar para o mesmo lado”.
Além disso, “na perspetiva empírica e científica, não se vê absolutamente ligação nenhuma entre o movimento aparente do planeta Mercúrio e a vida na Terra”, conclui.
A mesma explicação é partilhada numa página da NASA dedicada a explicar conceitos da astronomia de forma simples aos mais jovens. No texto, a agência espacial norte-americana esclarece que “o movimento retrógrado é uma mudança aparente no movimento do planeta através do céu” e que “não é real, na medida em que o planeta não começa fisicamente a mover-se para trás na sua órbita”.
“Apenas parece fazê-lo devido às posições relativas do planeta e da Terra e à forma como estes se movem em torno do Sol”, acrescenta-se.
Não há evidência científica de que o “Mercúrio Retrógrado” influencie diretamente a saúde das pessoas
Quanto às alegações relacionadas com a influência do Mercúrio retrógrado na saúde humana, o especialista em Medicina Geral e Familiar e professor na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Paulo Santos, adianta que “não há evidência científica” que as sustente.
O médico consultado pelo Viral explica que estas afirmações fazem parte de um conjunto de crenças sobre supostos “fenómenos” sem comprovação – como a influência dos signos na personalidade – que surgiram, sobretudo, do desconhecimento do ser humano em relação ao cosmos e que se mantiveram até hoje.
“Nós só chegamos ao microcosmos e ao macrocosmos há muito poucos anos, fruto da nossa capacidade tecnológica para perceber aquilo que são os fenómenos naturais, nomeadamente a aplicação das leis da física. E, portanto, as pessoas olhavam para o céu, viam as constelações e davam-lhes significados que, na realidade, não existem”, contextualiza.
Além disso, continua, o facto de a Lua, o satélite natural da Terra, ter influência em fenómenos naturais – como as marés – leva as pessoas a pensarem que, “então, isto deve ser verdade para todos os outros” planetas, o que não se confirma.
O que explica os relatos de pessoas sobre a influência do “Mercúrio retrógrado” no seu estado de saúde?
“Costuma-se dizer que a cisma é pior do que uma doença”, ironiza Paulo Santos, quando questionado sobre o que pode explicar o facto de algumas pessoas sentirem o seu estado de saúde negativamente afetado durante o “Mercúrio retrógrado”.
O professor da FMUP não se fica pela ironia e acrescenta, de imediato, que a saúde “não é apenas o caráter físico”, sendo constituída por quatro dimensões que se influenciam entre elas.
A primeira dimensão, a “física”, explica-se “pelas leis de física e pelas leis da biologia” e está relacionada com “o funcionamento de um conjunto de mecanismos neurofisiológicos e anatómicos e que, no fundo, nos põe a funcionar”.
Contudo, sublinha o médico, “há outras três dimensões que são tão importantes como a física naquilo que é a definição do estado de saúde”.
São elas:
- a psique, uma dimensão relacionada “com a forma como eu olho para mim próprio e como eu me entendo a mim próprio”;
- a social, “que tem que ver com a forma como eu me enquadro com os outros e a forma como eu vivo com as outras pessoas”;
- e a existencial ou espiritual, um “aspeto de alavancagem” relacionado com o sentido de propósito e significado da vida (que pode ou não estar associado a crenças religiosas), ou seja, “o eu transformar-me a mim próprio em qualquer coisa que é maior do que simplesmente eu e o nós”.
Posto isto, desenvolve Paulo Santos, “quando nós olhamos para estas dimensões da saúde, percebemos que pode haver aqui interações muito relevantes do ponto de vista social e deste existencialismo – do tal ‘Deus’ que nos dá sinais através dos astros e da forma como simbolicamente e classicamente foram sendo percebidos estes sinais – que interfiram naquilo que é o nosso próprio estado de saúde”.
Isto significa que o “Mercúrio retrógrado” em si mesmo não vai provocar diretamente problemas de “saúde física”, como “cancros ou enfartes”, mas a crença no impacto deste “fenómeno” pode levar ao aparecimento de “mal-estares que, objetivamente, interferem tanto na funcionalidade das pessoas e na vida das pessoas quanto a existência de uma doença física”.
Estas crenças podem inclusive resultar num agravamento do estado de saúde de uma pessoa se, “nesta interação entre as diferentes dimensões, houver uma disfuncionalidade que faça com que, por exemplo, uma hipertensão ou umas tensões altas que já existiam desregulem, simplesmente, porque há uma preocupação em relação a qualquer sinal que foi entendido como uma mensagem do divino”.
Em conclusão, o fenómeno conhecido como “Mercúrio retrógrado” é apenas uma ilusão ótica e não há evidência científica que comprove a sua influência direta no estado de saúde das pessoas. No entanto, como a saúde tem outras dimensões que não a física, estas crenças e o modo como a pessoa lida com elas podem ter impacto na forma como se sente.
LER MAIS ARTIGOS DO VIRAL:
Categorias: