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Hepatite aguda atípica deixou de ser misteriosa? O que já se sabe e o que está (ainda) por explicar

17 Abr 2023 - 02:27

Hepatite aguda atípica deixou de ser misteriosa? O que já se sabe e o que está (ainda) por explicar

Em abril de 2022, os alarmes dispararam: pediatras e gastrenterologistas pediátricos começaram a reportar casos de uma hepatite aguda atípica grave em crianças muito pequenas. A revista científica Nature avança agora com as possíveis causas desta doença e a gastroenterologista pediátrica Piedade Sande Lemos explica ao Viral as conclusões dos investigadores.

Como tudo começou

Os primeiros casos começaram a ser reportados a 5 de abril de 2022: crianças com menos de 10 anos estavam a chegar aos serviços de saúde com quadros de gastroenterite moderada a grave. 

Devido à rápida evolução dos sintomas, os doentes eram avaliados laboratorialmente e revelavam valores de transaminases muito elevados, “mais de 500 UI/ML, quando o normal é ter até 35/40 UI/ML”.

“Às vezes, quando a criança tem uma gastroenterite ou uma mononucleose, os números podem subir até 100/150 UI/ML, mas se chegam a 300 UI/ML já ficamos um pouco mais aflitos”, conta ao Viral Piedade Sande Lemos, gastroenterologista pediátrica no grupo CUF e professora na Nova Medical School.

Eram quadros clínicos que há muito não se viam na prática médica e evocavam memórias do tempo em que havia casos graves de hepatite associada a vírus hepatotrópicos, “como quando tínhamos casos de hepatite A, em que as pessoas ficavam muito doentes, com muita icterícia, tinham de ficar isoladas, coisas que já não vemos hoje porque, como temos as vacinas e temos melhores condições sanitárias, deixámos de ter estas hepatites tão graves”, recorda a especialista.

Pouco se sabia sobre o que estava a causar esta hepatite aguda atípica e grave em crianças tão jovens, com um crescimento rápido no número de casos nos primeiros dias da primavera do ano passado. Só agora, passados 12 meses, é que se fez luz sobre as possíveis explicações.

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Quais são as causas avançadas pelos investigadores para a hepatite aguda atípica?

A revista Nature avançou a 30 de março com a publicação de três estudos em simultâneo – um realizado nos Estados Unidos da América e dois no Reino Unido, um conduzido por um consórcio de Londres e outro da autoria de investigadores da Universidade de Glasgow, na Escócia – que apontam o vírus adeno-associado 2, ou AAV2 na sigla anglo-saxónica, como o vetor que, em conjunto com outros vírus, desencadeou a infeção hepática atípica.

Piedade Sande Lemos, que também presidiu à Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia, Hepatologia e Nutrição Pediátrica até 1 de abril passado, explica que este não é um vírus desconhecido da comunidade científica, mas até agora não era considerado uma entidade patogénica, ou seja, causadora de doença.

Existem inúmeros vírus e dessa panóplia quase incontável, “cerca de 200 são capazes de causar doença na espécie humana”, como é o caso dos adenovírus – que todos os anos são responsáveis por conjuntivites, pneumonias, infeções que podem ser bastante agressivas na criança e no adulto imunocomprometido – ou a família do vírus herpes, da qual faz parte o herpesvírus humano 4, também conhecido como Epstein-Barr, que causa mononucleose infeciosa.

O grupo dos vírus associados não era, até agora, considerado causador de doenças, funcionavam apenas como agentes de entrada nas células que até estão a ser estudados para utilização em terapias genéticas.

No ano passado, os médicos que receberam as crianças doentes e os investigadores que estudavam as possíveis causas perceberam que “havia vírus associados [ao quadro clínico], mas os dados não faziam muito sentido porque tínhamos casos com adenovírus, alguns com Covid-19, mas, por exemplo, nos casos das crianças na Europa, apenas 10% tinha Covid-19 associado”.

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“Era muito confuso”, por não haver um único agente que fosse comum a um grande número de crianças, reconhece a especialista.

“Agora, nestes três trabalhos realizados em três sítios diferentes (o que dá mais força científica), os investigadores concluíram que a grande maioria das crianças estava infetada com AAV2”, sublinha Piedade Sande Lemos, e a expressão dos dados é elevada.

No trabalho da Escócia o AAV2 estava presente em 81% das crianças avaliadas, na investigação americana o AAV2 estava presente em 93% dos casos e a investigação inglesa encontrou AAV2 em 95% das crianças infetadas. 

“É a primeira vez que um único vírus está presente em quase todos os casos analisados”, reforça a gastroenterologista pediátrica. 

A maioria destas crianças tinha também outros vírus associados como o adenovírus, o herpes vírus ou o Sars-CoV-2. 

Por exemplo, os dados americanos revelaram que 70% das crianças com o AAV2 tinha mais três vírus presentes no sangue – reforçando a hipótese de o AAV2 precisar de outro agente para causar doença.

Os confinamentos podem ser a causa da maior suscetibilidade das crianças ao AAV2?

Esta é uma das linhas de investigação que a partir da publicação destes dados irá ser conduzida. Tentar perceber o motivo pelo qual um vírus que até ao ano passado era inócuo para o corpo humano se tornou num agente patogénico.

Piedade Sande Lemos considera necessário perceber o impacto que os vários momentos de confinamento social tiveram no sistema imunitário das crianças, tal como defendem os investigadores. 

A especialista reconhece que os primeiros tempos de pandemia foram bastante calmos para quem trabalhava em Pediatria, já que o Sars-CoV-2 não causava doença grave nos mais novos que, durante os invernos de 2020, 2021 e início de 2022, estiveram protegidos em casa, salvaguardados do contacto com os vírus que costumam circular durante os meses mais frios.

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Depois, com a reabertura da sociedade, “tivemos as infeções [respiratórias] todas fora do tempo normal e isso pode estar relacionado com o facto de os mais pequenos não terem tido a modulação imunológica própria do percurso natural do contacto com os diversos vírus nas diferentes fases [da infância]”, refere a gastroenterologista pediátrica.

Os estudos agora publicados sugerem essa hipótese, mas referem que é necessário conduzir novas investigações para clarificar o que tornou estas crianças mais suscetíveis ao AAV2.

Noutro plano, parece estar descartada a ligação com possíveis efeitos secundários da vacinação contra o Covid-19 já que, pelo menos nos casos europeus, 90% das crianças que ficaram doentes não tinha recebido a vacina.

Existem crianças geneticamente mais vulneráveis ao AAV2?

A possibilidade de existirem crianças geneticamente mais vulneráveis ao AAV2 apenas foi colocada pelo estudo da Universidade de Glasgow.

Neste trabalho, os cientistas identificaram a variante DRB1* 04:01 de uma forma do Antígeno Leucocitário Humano (HLA) em 25 dos 27 casos analisados e sugerem que esta alteração genética pode ter tornado as crianças mais vulneráveis à ação do AAV2.

Segundo a explicação de Piedade Sande Lemos, os HLA são “moléculas no sistema imunitário que estão à superfície das células T” e são antigénios de histocompatibilidade, ou seja, responsáveis pela rejeição ou não das transfusões sanguíneas ou dos transplantes de órgãos. 

A gastroenterologista pediátrica considera ser necessário avaliar a existência desta alteração genética nos outros estudos, para perceber se as características genéticas do hospedeiro têm uma relação com a capacidade de o AAV2 causar doença.

A hepatite aguda atípica em crianças desapareceu?

É um facto demonstrado que os casos que começaram a surgir no início de abril cresceram rapidamente nos meses de primavera, em julho de 2022 começaram a diminuir e, depois, desapareceram completamente. É outra linha de investigação que está em aberto: perceber o motivo para que a doença tenha desaparecido tão rapidamente como surgiu. 

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A gastroenterologista pediátrica diz que a atividade clínica já voltou à normalidade conhecida antes da pandemia por Covid-19, com os casos comuns de gastroenterite, de infeções respiratórias e mononucleose infeciosa que costumam aparecer nos serviços de saúde.

Entre abril e julho do ano passado, foram contabilizados 1010 casos de hepatite atípica em 35 países, dos quais resultaram 22 mortes e mais de 40 transplantes de fígado. Na região da Europa foram reportados 572 casos, com destaque para o Reino Unido, onde foram diagnosticadas 280 crianças com esta doença.

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Piedade Sande Lemos estava na equipa do Hospital Fernando da Fonseca, como conhecido como Hospital Amadora/Sintra, quando recebeu alguns dos primeiros casos diagnosticados em Portugal.

Ao todo, o país registou 28 casos de hepatite aguda atípica, que recuperaram totalmente sem necessidade de transplante, e não ocorreu nenhuma morte.

“Foi um pico de quatro meses com crianças muito doentes, com muita icterícia, com o fígado em péssimo estado, mas [globalmente] a grande maioria recuperou, porque o fígado é um órgão que recupera muito bem, desde que o vírus, ou o agente agressor, seja eliminado”, conclui.

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Pediatria

17 Abr 2023 - 02:27

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