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Da TV à música. Como a ditadura da imagem afeta as mulheres com exposição pública (e não só)

6 Abr 2023 - 08:05

Da TV à música. Como a ditadura da imagem afeta as mulheres com exposição pública (e não só)

“Execrável”, “anacrónica” e “machista” foram algumas das palavras utilizadas nas redes sociais e no espaço público para descrever um artigo de opinião de Alexandre Pais, publicado no Correio da Manhã, em que o cronista criticava o corpo e a forma de vestir de Cristina Ferreira e de Maria Botelho Moniz e comparava a imagem das apresentadoras de televisão com a de outras mulheres que trabalham no mesmo meio.

A onda de solidariedade não tardou, com vários comentários de apoio às apresentadoras a serem partilhados nas redes sociais e nos espaços de comentário dos órgãos de comunicação social.

Da polémica surgiu também um reacendimento do debate sobre os perigos da ditadura da imagem, da magreza e da juventude eterna que persegue as mulheres, nomeadamente as que têm mais exposição pública.

Nesse sentido, o Viral questionou a atriz Cláudia Semedo, a jornalista Ana Patrícia Carvalho e a rapper Capicua (nome artístico de Ana Matos Fernandes) sobre como veem a pressão em relação à imagem e como lidam com este problema e contactou duas psicólogas – Filipa Menano de Almeida e Alexandra Barros – para perceber que danos pode este escrutínio constante do corpo e da beleza provocar na saúde mental e na autoestima das mulheres.

Cláudia Semedo: “Foste perfeita, só tens de perder isto aqui”

Créditos: Filipe Ferreira

Passaram cerca de 20 anos desde o dia em que, depois de um direto televisivo, Cláudia Semedo diz ter ouvido as seguintes palavras: “Foste perfeita, só tens de perder isto aqui”.

E o que era “isto aqui”? Era “um pedacinho da minha barriga”, adianta a atriz, encenadora e apresentadora de televisão, em declarações ao Viral.

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Na altura, assegura a artista, respondeu que deveriam esperar dela “uma boa comunicadora e não um corpo”. E é desta forma que sempre lidou com a pressão “constante” em relação à imagem: concentrando-se nas suas “capacidades de comunicação”, com consciência de que “não tinha a aparência de manequim que, infelizmente, é muito exigida em televisão”.

“Fui sempre educada para a resiliência e para me preocupar mais com as minhas capacidades enquanto ser humano e enquanto profissional do que propriamente com essas questões da aparência física. Até porque eu serei sempre fora da norma num país caucasiano”, acrescenta.

Para Cláudia Semedo, esta pressão em relação à imagem é “transversal a todas as mulheres”, embora admita que as que têm exposição pública veem as críticas chegar-lhes “com mais facilidade”, porque “toda a gente comenta aquilo que vê na televisão com maior à vontade”.

“Enquanto mulheres, trabalhando em televisão ou não, todas nós sentimos a pressão de termos um corpo altamente ‘fit’ e super ‘seco’, porque sempre demonizaram muito o corpo da mulher que não correspondia a esse padrão”, completa.

Ainda que tenha arranjado estratégias para lidar com a ditadura do corpo (supostamente) perfeito, a atriz assinala que existem momentos em que a pressão é maior, nomeadamente nas “provas de roupa” em que as peças “vêm de showroom” e estão feitas “para [servir a] modelos”.

As críticas, contudo, raramente são o suficiente para abalar a autoestima da artista. A exceção foi o regresso à televisão depois de ser mãe pela primeira vez.

“Normalmente, eu respondia [às críticas] com muita rapidez e muita facilidade, mas nessa altura magoou-me mais. Não que tenha alterado o meu posicionamento em relação a isso, porque eu sempre me foquei nesse lado de que o meu corpo não entra nesta equação. O que entra nesta equação é a minha capacidade enquanto comunicadora”, detalha.

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Apesar de acreditar que “podia ter tido muito mais trabalho se tivesse outra aparência”, Cláudia Semedo afirma que “isso vale o que vale”, considera-se “feliz” com o seu percurso profissional e defende uma maior diversidade de corpos não só na televisão, mas “em todos os lugares da nossa vida”.

“Há muitos corpos que não são representados, como os corpos racializados e os corpos trans, e eu acho que faz muita falta essa representatividade, porque a primeira possibilidade para se sonhar é precisamente essa”, conclui.

Ana Patrícia Carvalho: “Dizem que eu não deveria mostrar os joelhos”

Para Ana Patrícia Carvalho, a pressão externa sobre a imagem das mulheres é inegável e manifesta-se nos comentários e nas mensagens que recebe nas redes sociais, mas não só.

A jornalista e pivô da SIC expõe, em declarações ao Viral, que “há mesmo pessoas que chegam a enviar e-mails para o atendimento da SIC” direcionados “para a forma física ou para a imagem”. 

Muitos deles, aponta, são depreciativos: “Dizem que eu não deveria mostrar os joelhos, que os meus joelhos são sujos, que não devia usar saias, que estou mais magra ou que estou mais gorda, [fazem] comentários sobre o cabelo, sobre a maquilhagem”.

Embora considere que estes comentários são “tristes” e “acabam por gerar insegurança em quem é alvo deles”, Ana Patrícia Carvalho crê que, com os anos, também se aprende a desvalorizar” estas abordagens e a combatê-las com “confiança”, embora haja dias em que é mais fácil “digerir, desvalorizar e avançar” do que noutros.

“Mas, com os anos de profissão, tu pensas: se a pessoa está a referir isso, é porque a nível de trabalho eu estou a fazer tudo bem. Porque não me está a atacar naquela que é a minha competência e a minha performance”, destaca a jornalista.

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A pivô diz compreender que é “muito fácil alguém fazer este tipo de críticas escritas, não dar a cara por isso e estar atrás de um computador a descarregar algum tipo de frustrações ou de ódios de estimação que possa ter”. No entanto, garante, escolhe responder a esta pressão com “trabalho”.

“A prioridade é o meu trabalho, a preparação das entrevistas, estar no ar três ou cinco horas e saber que domino tudo o que está a acontecer. Não me preocupo muito mais do que isso. Acho que, ao longo dos anos, isso é encarado de uma forma diferente”, reforça.

Quanto a “este tipo de comentários sobre a imagem das mulheres” que, na visão da jornalista, “chegam a ser chocantes, tristes e perversos”, Ana Patrícia Carvalho defende que as pessoas “deviam falar mais sobre a inteligência das mulheres, sobre a competência e sobre o crescimento profissional”.

“Em jeito de brincadeira, costumo dizer sempre que a peça mais sexy que eu posso usar todos os dias no ar é o meu cérebro. É isso que eu acho que as pessoas devem começar a valorizar, e não o resto”, termina.

Capicua: “Nunca lhe ocorreria fazer isso com o Fernando Mendes”

Créditos: Wesley Allen

Socióloga de formação, quando começou a fazer música para um público mais alargado, Capicua (nome artístico de Ana Matos Fernandes) já tinha – nas palavras da própria – “20 e bastantes anos” e era uma mulher “politizada” com uma “mensagem musical feminista” bem marcada. Por isso, crê, na indústria “ninguém teria o atrevimento” de lhe dizer que deveria encaixar num determinado padrão.

Lembra-se, contudo, de, em adolescente, ter passado “por episódios de bullying” e de ter sido criticada pela sua imagem ao longo do seu crescimento. 

Além disso, salienta, “quase ninguém se atreveria a negar que existe pressão acrescida para as mulheres naquilo que tem a ver com a expectativa sobre o seu corpo e a forma como ele deve cumprir com um padrão muito exigente”.

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Na visão de Ana Matos Fernandes, este padrão “é estabelecido e alimentado todos os dias pela cultura de massas, pelos media, pela internet, pela televisão, pela publicidade e por todas as formas que estabelecem aquilo que é tido como belo, como bem sucedido, como objeto de desejo”.

“Esse padrão, que é muito pouco diverso – quer em termos de tamanho, quer em termos de cor, quer em termos de idade-, acaba por ser um espartilho muito apertado para a maioria das mulheres. É um padrão que exclui a maioria delas”, defende

Mesmo as mulheres que correspondem a estas características tidas como ideais, “não estão propriamente descansadas ou bem consigo próprias na maioria das vezes, porque vivemos numa cultura que é muito exigente com as mulheres, que mina a sua autoestima permanentemente”, lamenta a artista.

A polémica da crónica de Alexandre Pais sobre Cristina Ferreira e Maria Botelho Moniz é, para a rapper e socióloga, um caso paradigmático da diferença da pressão exercida sobre as mulheres e sobre os homens no que diz respeito à sua imagem, aos seus corpos e ao seu envelhecimento.

“Estamos a falar de duas mulheres que têm atividade pública, que são bem sucedidas. Uma delas é uma das mulheres mais bem sucedidas na comunicação em Portugal e, ainda assim, é chamada de flácida, de velha, por um homem que tem mais de 70 anos e que se acha no direito de comentar o seu corpo, associando o seu sucesso ou insucesso à sua aparência física”, começa por explicar.

Por outro lado, continua a rapper, “nunca lhe ocorreria fazer isso com o Fernando Mendes, que é líder de audiências e tem excesso de peso”, ou “com outros apresentadores de televisão, atores homens, que são homens maduros, de cabelos grisalhos, com mais peso, que nunca foram ícones de beleza e que, ainda assim, têm o seu mérito profissional inquestionável”. 

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“Existe um duplo critério. E não é só na televisão, é em todos os meios. Isso é muito óbvio porque está em todas as esferas da nossa vida, e é permanentemente alimentado por todos nós, porque todos partilhamos o caldo cultural machista em que fomos criados e que compõe a nossa cultura”, argumenta.

A artista considera, por isso, esta pressão em relação à imagem das mulheres “perigosa”, porque faz com que estas “sejam muito mais propensas à insegurança, a problemas que têm que ver com distúrbios alimentares, se submetam a dietas e a tratamentos estéticos às vezes muito pouco saudáveis, a que permanente sintam síndrome do impostor em relação à sua competência profissional, porque nunca lhes chegam serem boas profissionais”.

Cumprir com as expectativas sociais ao mesmo tempo que projeta uma “imagem de sucesso” são “missões impossíveis” que as mulheres se sentem pressionadas a acumular.

Além de ter de ser “competitiva no trabalho, acumular a responsabilidade com os filhos, ter tempo para ir ao ginásio, manter uma juventude eterna”, a mulher é, nas palavras de Capicua, também pressionada a “fazer parecer que tudo isto é fácil”, ou seja, “a performar uma ideia de que está tudo controlado”.

“Isto é uma ideia que mina a saúde mental e que nos põe numa situação de grande exaustão”, concretiza.

No caso das “mulheres que trabalham com a imagem e que são ligadas à indústria do entretenimento”, pondera a artista, “o seu envelhecimento nem sequer é permitido”.

“É um processo muito doloroso ter de envelhecer aos olhos do público numa cultura como a nossa”, reflete Capicua.

A estratégia para a rapper conseguir lidar com esta pressão externa reside no facto de, desde a pré-adolescência, se ter interessado por ler sobre “questões de género, sobre feminismo” e de “ter sido sempre um bocadinho fora do padrão”, o que lhe permitiu encontrar “um espaço quase de liberdade, precisamente por não estar a tentar cumprir com a expectativa alheia”.

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“Claro que não sou imune, como nenhuma mulher é imune a uma cultura machista em que fomos socializadas. Há momentos em que tenho mais inseguranças, em que repenso mais sobre aquilo que eu gostaria que fosse a minha imagem, mas tenho muita autodisciplina para tentar que isso não ‘infete’ de forma nenhuma a minha autoestima e a minha autovalidação”, explana.

Por isso, aprofunda, “faço muito trabalho pessoal de me relembrar de que o meu valor intrínseco não tem a ver com a minha imagem e quão longe eu estou desse padrão”.

Mas como? “Politizando-me, rodeando-me de mulheres livres, espontâneas, validando o trabalho delas pelo que ele vale e não pelo aspeto de quem o faz, não caindo na armadilha de elogiar as mulheres pelo seu aspeto ou de comentar o corpo alheio”, responde.

Rejeitando o foco no papel “decorativo” da mulher, Capicua acredita que esta luta passa pela valorização dos aspetos que vão além da imagem.

“É sermos o mais livres possível, apoiarmos o talento umas das outras, consumirmos cultura feita por mulheres, apoiarmos as mulheres, elogiarmos outras mulheres por aquilo que elas valem enquanto seres humanos e não enquanto bonsais que são muito decorativos, mas que são permanentemente podados para ficarem pequeninos”, reitera.

Distúrbios alimentares e obsessão pelo corpo. Que danos provoca a ditadura da imagem?

As psicólogas consultadas pelo Viral – Filipa Menano de Almeida e Alexandra Barros – concordam que a pressão em relação à imagem das mulheres é “transversal”, embora reforcem que as figuras públicas estão mais expostas à crítica e, por isso, mais vulneráveis.

“Há grupos de risco, nomeadamente para os distúrbios alimentares, que são estes grupos em que o corpo está mais exposto e mais sujeito ao escrutínio”, afiança Alexandra Barros.

A psicóloga clínica e psicoterapeuta aponta que, “se a pessoa quer muito singrar nestas áreas e não consegue respeitar o seu corpo e a sua saúde, acaba por entrar num comportamento alimentar perturbado ou num distúrbio alimentar face a essa exigência”.

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No mesmo sentido, Filipa Menano de Almeida acrescenta que, “se uma pessoa se focar muito nesse tema da imagem corporal e do peso, a autoestima fica muito perturbada”, o que pode potenciar perturbações alimentares.

“Aliás, um dos critérios para a bulimia e para a anorexia é a autoavaliação indevidamente influenciada pela forma e pelo peso corporal”, frisa a psicóloga.

Por outro lado, esta obsessão “pode potenciar também a ansiedade ou perturbação de ansiedade” ou “problemas a nível da depressão”, já que “a saúde mental pode deteriorar-se bastante, tendo em conta a pressão que é sentida”.

“Existe, cada vez mais, uma obsessão com este corpo perfeito idealizado que, se formos a ver bem, nem sequer existe, porque aquilo que é exposto nas redes sociais é completamente alterado, com filtros”, indica Filipa Menano de Almeida.

Por isso, continua, “as pessoas sentem-se rejeitadas se não corresponderem a um determinado modelo e são constantemente bombardeadas com esse modelo de magreza, de juventude muito exagerado”.

Nas palavras de Alexandra Barros, para lidar com este problema, é necessário “sensibilizar-se para esta questão dos estereótipos de corpo, da ditadura da beleza e do quão mal isto faz à saúde mental, seja da pessoa que está exposta, seja de quem assiste”.

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“De certa forma, é sermos ativistas desta mensagem de que o valor de uma pessoa, a competência de uma pessoa vai muito além do corpo. Além disso, é importante perceber que comentar o corpo das outras pessoas, o peso das outras pessoas e fazer também disso um critério de avaliação do valor da pessoa é errado”, recomenda.

Esta visão é semelhante à de Filipa Menano de Almeida que considera que algumas das estratégias para lidar com esta pressão passam, em primeiro lugar, por “filtrar a informação” a que estamos expostos: “Por exemplo, nós podemos selecionar as contas que seguimos ou não no Instagram”.

Noutro plano, aconselha, é importante dar valor a momentos e a características que não estão relacionados com a imagem: “Devo valorizar outras áreas da minha vida e dar-lhes uma atenção muito mais plena, aperceber-me das minhas características para além do meu corpo, o que é que eu gosto de fazer, o que é que me dá prazer fazer, acrescentar mais momentos de prazer e de bem-estar o mais possível”.

Por fim, é fundamental “olhar para a saúde como a busca pelo bem-estar e não pela busca de ter um peso tal ou um corpo determinado”.

“É começar a pensar no meu corpo como a minha casa, que eu tenho de cuidar, que me permite fazer tudo aquilo que eu quero e que me permite existir. Por isso, preciso de cuidar dele em prol da minha saúde e do meu bem estar e não para tentar encaixar num ideal qualquer que não me pertence”, finaliza.

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Saúde mental

6 Abr 2023 - 08:05

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