O Dia do Pai é, para muitas pessoas, um bom pretexto para homenagear alguém que é sinónimo de proteção, segurança e amor. Mas, para outras, pode ser uma data dolorosa, marcada pelas memórias de uma figura paterna que as abandonou ou que, estando lá, nunca esteve envolvida nas suas vidas ou emocionalmente presente.

A pensar nisso, duas psicólogas explicam ao Viral que marcas é que o abandono (físico ou emocional) por parte do pai pode deixar nas crianças, que efeitos negativos podem ter na vida adulta e quais as estratégias para minimizar estas cicatrizes.

Quais as consequências do abandono paterno para a criança?

Em declarações ao Viral, Catarina Ribeiro, psicóloga, docente e investigadora da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica, adianta ser necessário, antes de mais, referir que “hoje temos um sistema social e uma configuração familiar que não se compatibiliza muito com os papéis que atribuímos tradicionalmente à mãe e ao pai”.

Por isso, sublinha, os potenciais impactos do abandono físico ou emocional que expõe nestas declarações seriam semelhantes caso o tema fossem os efeitos negativos da ausência por parte da figura materna.

Na mesma linha, Tânia Gaspar, psicóloga e coordenadora da equipa portuguesa do estudo “Health Behaviour in School-aged Children” da OMS, acrescenta que, “há uns anos, o papel do pai era um papel mais afastado emocionalmente”, já que tinha como principal função “sustentar a família”, enquanto “as tarefas afetivas, educativas e pedagógicas eram mais atribuídas à mãe”.

“Os pais de hoje, os pais mais novos, têm um papel crescente em todas as tarefas com a criança, tanto a nível de cuidados, como também de ocupação de tempo livre. Logo, a ausência desse pai e desse afeto vai crescentemente ter mais efeito, uma vez que esse papel está mais ativo”, sustenta.

Feito este preâmbulo, ambas as investigadoras concordam que o abandono físico ou emocional por parte do pai na infância é um “fator de risco”, embora alertem para o facto de existirem fatores protetores (dos quais falaremos mais adiante neste texto) que podem minimizar estes impactos.

Mas que impactos são estes? Tânia Gaspar responde que existem três questões fundamentais nesta matéria: a social, a financeira e a emocional.

A questão social está associada, por exemplo, no caso do abandono físico, com as dificuldades de uma criança em enfrentar a sociedade sem pai.

“No caso de uma criança que não tenha o pai efetivamente, de cada vez que os colegas na escola fazem o trabalho para o Dia do Pai, essa criança acaba por, de alguma maneira, ter um estigma que pode internalizar ao longo da sua vida”, exemplifica.

Já a dimensão financeira relaciona-se com as dificuldades que as famílias monoparentais podem atravessar e os impactos que isso poderá ter na criança: “Por exemplo, uma mãe que viva sozinha com um filho poderá ter questões financeiras agravadas, o que pode, de alguma maneira, também interferir na saúde e nas oportunidades da criança”.

Por outro lado, a componente emocional está relacionada com o papel dos pais na transmissão de “valores, afeto, regras e valores” e na “construção do ‘eu’” da criança.

“Os pais têm um papel muito importante na construção do ‘eu’, porque são aquelas primeiras pessoas que transmitem à criança segurança, conforto, incentivo, carinho, afeto, modelo, etc.”, completa.

Quando esse papel não é desempenhado por um dos cuidadores, seja pelo abandono físico ou pela distância emocional face à criança, podem surgir problemas de identidade ou dificuldades na gestão das emoções, sobretudo se não existirem outros fatores protetores que mitiguem essa ausência.

Catarina Ribeiro explica que este abandono tem influência num “sistema muito importante na formação da nossa personalidade que é a vinculação”.

“A vinculação com as nossas figuras de referência diz respeito à relação que se constrói através de interações repetidas nas quais a criança se sente protegida pela figura de vinculação face a situações de ameaça. Ao mesmo tempo, aquela figura é tão importante que, quando não está presente, a criança sente-se livre para explorar o outro regente, outras relações, etc.”, detalha.

Assim, “os pais que são muito ausentes ou que estão presentes sem interagir com a criança criam padrões de vinculação inseguros”. Nesses casos, aponta a investigadora, “a criança não sabe com o que contar daquela pessoa e não tem a certeza daquilo que todas as crianças deviam ter a certeza: que é de serem amadas incondicionalmente”.

Perante a incerteza do afeto daquela figura, “as crianças ficam com maior dificuldade em regularem os seus afetos”.

“São crianças mais predispostas a terem problemas de autoestima, menos autoconfiança e menos capacidade de perceber ou de lidar com a adversidade afetiva. Ficam muito mais inseguras ou muito mais sentidas com pequenas rejeições”, descreve.

Esse receio da rejeição leva a que estas crianças tenham, muitas vezes, “tendência para agradar aos outros e para agradar a todas as outras pessoas com medo de as perder”.

Aliás, vinca, “está mais do que estudado que os padrões de vinculação inseguros são altamente preditores de problemas de saúde mental na idade adulta”.

No sentido contrário, assinala, “ter boa vinculação com o pai e com a mãe funciona como uma vacina”, ou seja, “é um fator de proteção enorme e muito eficaz”.

Que marcas podem ser transportadas para a vida adulta?

Questionada sobre os impactos do abandono na infância, Tânia Gaspar indica que estas situações podem, por exemplo, fazer com que estas crianças se tornem adultos com uma perceção negativa do seu valor pessoal e levar à repetição de comportamentos pouco saudáveis.

“O que é que o espelho nos devolve de nós se formos tratados com hostilidade? Devolve que nós não valemos a pena, devolve que não somos amados, que não somos queridos. E também nos devolve um estilo de relação que nós, muitas vezes, vamos replicar com os amigos, com os professores, com as outras pessoas”, argumenta.

A repetição deste estilo relacional pode acontecer “numa perspetiva agressiva”, mas também “numa perspetiva de vítima junto dos seus pares ou dos seus amigos”.

Esse adulto pode também ter uma “sensação de vazio, ou seja, de que houve uma componente no seu desenvolvimento que não foi preenchida, que não teve o contributo que deveria ter tido”.

Por outro lado, “a falta de modelo de como ser pai” pode, em alguns casos, ser um problema: “Ou seja, quando a pessoa vier a ser pai, ter dificuldade em saber como é esse papel e de como é que deverá fazê-lo.”

No entanto, para esses adultos a paternidade vivida na primeira pessoa também pode ser um “fator de grande desenvolvimento e de reparação”. Isto é, “a pessoa fazer com que o momento de ser pai possa ser uma reparação daquilo que foram as dificuldades sentidas durante o seu desenvolvimento”.

Que fatores protetores podem mitigar este fator de risco?

Para Catarina Ribeiro, “a ausência paterna ou materna não tem de ser sempre um acontecimento traumático”. Isto porque, “embora seja um fator de risco, o seu impacto depende dos fatores protetores”.

“Há uma série de fatores protetores que vão amenizar o impacto desta experiência de adversidade. Desde logo, ter outras relações significativas que tragam segurança e proteção e sentidas como gratificantes com outros adultos (avô, mãe, padrasto, etc.)”, começa por enumerar.

O papel do outro progenitor, segundo a investigadora, é também “extremamente importante para amenizar este impacto” enquanto “figura muito estruturante”, procurando “não agudizar o sofrimento da criança, não dizer mal do pai, não afastar a criança do pai e não contribuir para deteriorar ainda mais a relação”.

Seguindo a máxima “é preciso uma aldeia para criar uma criança”, Catarina Ribeiro refere outros fatores que podem ter um impacto de proteção como, por exemplo, “ter um contexto socioeconómico e familiar protetor, estar inserida numa comunidade robustamente solidária” e ter bons “cuidados de saúde e de educação”.

Que estratégias adotar para minimizar as cicatrizes do abandono do pai?

Quando os fatores protetores não foram suficientes para mitigar os fatores de risco, surgem cicatrizes na vida adulta. Mas Tânia Gaspar acredita que essas marcas não têm de ser uma sentença e que existem estratégias para as minimizar. 

A primeira passa, nas palavras da especialista, pelo “autoconhecimento”, ou seja, a pessoa ter consciência do que aconteceu e de como isso a marcou.

“É importante a pessoa conseguir identificar os comportamentos menos saudáveis e compreender de onde é que eles vêm. E esse é um processo que a pessoa pode fazer sozinha ou com acompanhamento psicoterapêutico”, explana.

Tendo esta consciência, é necessário “fazer um esforço para mudar para não estar continuamente a eternizar esta situação” e a replicar “dinâmicas relacionais parecidas”.

Ao mesmo tempo, Tânia Gaspar considera  fundamental “a questão do autocuidado, de tentarmos fazer atividades que fortaleçam a nossa saúde física, a nossa saúde psicológica, termos relações sociais positivas, fazermos atividades desportivas e empenharmo-nos no trabalho, por exemplo”.

Na visão da especialista, tudo isto são “fatores que nos vão robustecer e que nos vão ajudar a lidar com algumas dificuldades que tivemos durante o desenvolvimento”.

O importante, reforça a psicóloga, é “perceber o seguinte: aquela situação aconteceu, foi de alguma maneira danosa para o meu desenvolvimento, mas eu vou arranjar maneira de me robustecer para que isso não vá impregnar toda a minha vida”.

“Há pessoas que deixam esta situação inundar toda a sua vida. Ou seja, não conseguem ter relações de casal, não conseguem ter relações com os filhos, com a família. Há uma série de confusões que, se a pessoa deixar, podem inibir as oportunidades de desenvolvimento e de conseguir adaptar-se e ter uma vida saudável”, alerta.

A psicóloga acrescenta que, na sua prática clínica, já testemunhou exemplos de “pessoas que deram uma volta de não sei quantos graus na sua vida, porque conseguiram perceber que se continuassem a viver com aqueles óculos, com aquela perspetiva, nunca iriam conseguir ultrapassar aquela situação e construir uma vida diferente”.

“Até determinada altura da nossa vida ainda estamos muito ligados e dependentes daquilo que é o nosso desenvolvimento inicial, mas depois há uma altura em que nós temos de dizer: ok, eu sou assim, tenho estes inputs, estes impactos, mas, agora, aquilo que vou fazer com a minha vida já está nas minhas mãos”, conclui.

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