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Como é sobreviver a um cancro na adolescência? O testemunho de Júlia

Enfrentar uma doença oncológica quando se é adolescente acarreta uma série de desafios associados à doença em si, mas também a um período da vida em que o jovem tem dúvidas, inseguranças e ainda está a tentar encontrar o lugar que ocupa na família e na sociedade. Júlia Rodrigues conta como foi viver esse período e como lida hoje com as sequelas. Maria de Jesus Moura aborda os mecanismos que jovens e famílias encontram para enfrentar um momento traumático. Ambas tentam explicar ao Viral como se vive o cancro na adolescência.

16 Out 2022 - 10:38

Como é sobreviver a um cancro na adolescência? O testemunho de Júlia

Enfrentar uma doença oncológica quando se é adolescente acarreta uma série de desafios associados à doença em si, mas também a um período da vida em que o jovem tem dúvidas, inseguranças e ainda está a tentar encontrar o lugar que ocupa na família e na sociedade. Júlia Rodrigues conta como foi viver esse período e como lida hoje com as sequelas. Maria de Jesus Moura aborda os mecanismos que jovens e famílias encontram para enfrentar um momento traumático. Ambas tentam explicar ao Viral como se vive o cancro na adolescência.

Em 2014, Júlia Rodrigues tinha 15 anos e estava a fazer a transição do 9º para o 10º ano. Vivia um período de muito estudo, de muito trabalho e, por isso mesmo, associava o cansaço que sentia ao momento desafiante vivido por quem está concentrado em ter bons resultados escolares. O tempo passava, o cansaço permanecia.

“No entanto, mais do que o cansaço, o que me levou ao médico foram os nódulos que me apareceram no pescoço”, conta a estudante ao Viral.

Na altura, não deu muita importância, pensou que estaria com o sistema imunitário mais fragilizado, mas com os resultados das primeiras análises foi logo encaminhada de Fátima, região onde vivia, para o Hospital Pediátrico do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, a unidade de referência para a oncologia pediátrica na região centro.

“Achei estranho ser uma coisa que estivessem a investigar muito, mas nunca tinha tido uma experiência próxima desta realidade”, reconhece a jovem, recordando os momentos vividos há quase 10 anos.

Maria Jesus Moura, diretora da Unidade de Psicologia do Instituto Português de Oncologia de Lisboa, explica que, nesta altura da vida, o mais comum, e psicologicamente mais saudável, é os jovens estarem “mais focados noutras questões da vida”, em que lidam com os desafios do quotidiano inerentes à adolescência, como o autoconhecimento e a descoberta da identidade própria.

É um momento em que vivem uma espécie de “síndrome da imunidade”, pois apesar de a idade já lhes permitir ter consciência da limitação da vida, “acham que este é um cenário que não acontece a eles próprios” e estão longe de imaginar-se doentes ou em perigo de vida.

A doença oncológica está longe de ser uma preocupação, uma fonte de conversas entre pares, como admite Júlia Rodrigues, que “até então nunca tinha sequer pensado em cancro, era algo que via na televisão, nas notícias ou num filme”. 

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Mas chegada à unidade de Coimbra, depois de realizados mais exames complementares de diagnóstico, em conjunto com os pais recebeu dos médicos a notícia do diagnóstico: tinha um linfoma de Hodgkin, um tumor maligno do sistema linfático, que faz parte de um dos grupos de doenças oncológicas mais frequentes em pediatria, como as leucemias ou os tumores do sistema nervoso central.

São considerados casos raros. Em Portugal, por ano, são diagnosticados cerca de 400 novos doentes, e podem ser bastante diferentes daqueles que afetam os adultos, o que implica também abordagens diferentes no tratamento. No entanto, a taxa de cura nas crianças e jovens ronda, atualmente, os 80%, uma taxa de cura superior à maioria dos cancros que afetam os adultos.

Quando Júlia recebeu a notícia já tinha a cirurgia marcada. A esta intervenção juntaram-se cerca de sete meses de tratamentos – entre quimioterapia e radioterapia – e os efeitos secundários conhecidos dessas terapêuticas. 

“Olho para essa altura, para a primeira vez que fiquei sem cabelo, e vejo que espoletei uma atitude muito própria que desconhecia em mim. Logo eu que até era muito apegada ao meu cabelo, mas instintivamente isso perdeu importância”, diz a jovem, que descreve ter ativado “o modo sobrevivência”, algo que “desconhecia” em si mesma, mas que revela ter ficado “feliz por descobrir”.

Segundo explica Maria Jesus Moura ao Viral, a reação de Júlia não é incomum a quem tem de lidar com o impacto de uma situação de crise tão desafiadora como uma doença oncológica. Maria de Jesus Moura usa o exemplo simbólico “do leque que costuma estar aberto e que, de repente [com o diagnóstico], fecha e o fechar é ter um foco que passa a ser combater a doença”. 

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Perante um fenómeno adverso, uma situação de crise com um grande impacto na vida do adolescente e da família, este entrar em “modo de sobrevivência” pode ser a forma de “atribuir um significado ou um sentido ao que se está a viver, ao desafio individual” e, sobretudo, “de dar resposta à necessidade maior [enfrentar a doença], distinguindo muito bem aquilo que é relativo do que é absoluto”, acrescenta a psicóloga. 

Podem até não lhe colocar esse selo, ou dar essa denominação, mas quando a prioridade é combater uma doença potencialmente fatal, os objetivos de vida dos doentes acabam por ser redefinidos e as prioridades ganham novos contornos.

Ainda assim, a forma como cada jovem lida com um fenómeno traumático e de grande intensidade emocional depende “da fase em que se encontra do ponto de vista do desenvolvimento cognitivo e também maturacional”, refere a psicóloga.

A partir dos 11 anos de idade, o adolescente já tem “um pensamento abstrato equivalente ao de um adulto e a forma como integra os conhecimentos do ponto de vista cognitivo já permite ter uma perceção de todos os fatores da doença e do que pode acontecer”. Assim, a maturidade está muito relacionada com a experiência de vida de cada um, a história individual e a estrutura familiar que, como fonte de apoio, “é determinante neste processo”.

“Eu não me revia em nenhuma das circunstâncias que os meus colegas estavam a viver”

Nos meses que durou o tratamento e nos tempos que se seguiram, Júlia tentou manter as rotinas. Ficou internada só quando as defesas imunitárias o exigiram, mas as terapêuticas eram feitas em ambulatório e permitiam que mantivesse alguma autonomia.

Faltou apenas ao primeiro período do 10º ano, mas o regresso à escola não foi fácil. Em primeiro lugar, porque não sentiu apoio da comunidade escolar para recuperar a matéria dos primeiros meses. 

Ouviu por mais de uma vez que o melhor seria recomeçar de novo no ano letivo seguinte e acompanhar as aulas logo de início. Não aceitou, exigiu continuar as aulas, recuperar no segundo e no terceiro período a matéria perdida. Assim, conseguiu passar de ano.

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Por outro lado, a adaptação ao ambiente escolar e ao convívio com os colegas e amigos trouxe grandes desafios. “Foi complicado”, reconhece Júlia: “Eu não me revia em nenhuma das circunstâncias que os meus colegas estavam a viver, havia uma dissociação muito grande entre a realidade que vivia na escola e o que vivia no hospital”. 

A jovem reconhece que se “identificava mais com o ambiente e com as pessoas do hospital do que com as pessoas da escola”, mas não olha com mágoa ou rancor para essas dificuldades de adaptação. 

Diz que “da mesma maneira que não tinha culpa de estar doente e a ser tratada, eles também não tinham culpa de não ter essa experiência” e, em vez de ficar revoltada, decidiu aceitar que a vida e as experiências de cada pessoa são diferentes. 

“Quando uma pessoa tem de tomar decisões tão importantes como a preservação da fertilidade ou os protocolos terapêuticos não é, de facto, a mesma coisa de saber se está ou não preparada para o teste de matemática do dia seguinte”, exemplifica.

A escola é, por excelência, o meio onde a criança ou o jovem tenta manter “um sentido de normalidade” durante o período de doença, diz Maria de Jesus Moura, embora haja momentos em que tal não é possível devido a tratamentos ou aos recobros necessários para recuperar as defesas imunitárias. 

O certo, comenta a psicóloga, é que o sentimento relatado por Júlia advém precisamente dos momentos de distanciamento entre o jovem e os amigos, cujo convívio é substituído pelos dias passados em ambiente hospitalar. 

“Passam muito mais tempo em conversas com o mundo dos adultos, com os profissionais de saúde e com os pais, a falar do consentimento informado e do processo terapêutico, do que com os pares, o que pode levar a um corte em termos de desenvolvimento das relações com os pares que pode ter consequências no seu percurso futuro”, explica a psicóloga. 

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Contudo, da experiência que tem nos casos que segue na consulta dos DUROS (Doentes que Ultrapassaram a Realidade Oncológica com Sucesso) no IPO de Lisboa, mesmo os jovens que viveram a doença no início da adolescência, quando “há um corte significativo com a rede de apoio de amigos e colegas”, e, por isso, lidaram com entraves no desenvolvimento de competências sociais e relacionais, na área psicossexual, na autoestima e na confiança atrativa amigos são capazes de construir a vida após a doença, seja o percurso profissional ou a vida familiar. 

“São dificuldades que não são inultrapassáveis e um conjunto significativo de sobreviventes consegue ter um crescimento pessoal pós-tratamento”, assegura a psicóloga.

Quando a vida parecia estar a retomar alguma normalidade depois da doença, Júlia Rodrigues tem a primeira recidiva, e, aos 16 anos, estava de volta aos tratamentos.  “Foi uma surpresa já que o meu linfoma tinha uma taxa de sucesso dos tratamentos bastante alta”, conta ao Viral. 

O mais surpreendente foi quando, cerca de dois anos depois da primeira, teve nova recidiva. Ao todo, foram três os momentos em que a jovem foi confrontada com o diagnóstico de cancro, em que teve de fazer tratamentos e em que teve de ajustar a vida às condicionantes da doença.

Ainda assim, garante: “Não me revolta, infelizmente aconteceu. Nesta roleta que é a vida, tive sorte. Estou há três anos sem tratamento e estou confiante”.

Cancro na adolescência: Entraves sociais mais duros do que sequelas físicas

Júlia Rodrigues está agora com 23 anos, frequenta a licenciatura em Estudos Artísticos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, e está também a fazer um curso sobre investigação clínica com o apoio da Associação Acreditar, onde faz parte do grupo de sobreviventes ao cancro pediátrico Barnabés.

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Da doença, para além das memórias, guarda sequelas físicas com que tem de lidar no dia-a-dia. Tem osteonecrose nos membros inferiores, o que significa que tem “os fémures ligeiramente destruídos desde o primeiro tratamento”. 

Conta-o com sentido de humor, embora reconheça que “provoca muito incómodo e há dias muito difíceis”, mas como se considera “muito teimosa, muito ativa” e não “para quieta”, o que “até pode ser um pouco prejudicial”. 

Faz exercício específico para ajudar na mobilidade, já se falou em colocar uma prótese, mas ainda não se considerou ser o momento certo por ser muito jovem e tratar-se de uma cirurgia muito dolorosa. Por agora, conta com a teimosia, “uma característica muito própria, mas se calhar também uma sequela aumentada pela doença”, para levar uma vida o mais ativa possível.

Outra consequência da doença é a infertilidade. Na altura, quando lhe foi colocada a possibilidade de preservação da fertilidade, Júlia estava a viver um dos momentos mais difíceis da doença, tinha passado por várias anestesias gerais e não quis avançar para mais um procedimento. Hoje tem pena de não o ter feito. Já fez testes e sabe que os tratamentos comprometeram a saúde reprodutiva, mas, mais uma vez, olha para a solução: a adoção faz parte dos planos de vida, porque ser mãe é um objetivo.

Todavia, aquilo que aponta como mais difícil para um sobrevivente do cancro pediátrico é a vida prática após a doença. “A nossa sociedade não está construída para suportar muitos problemas de pessoas que saem fora da conjuntura a que chamamos normal”, relata, acrescentando que “enquanto Barnabés ainda somos muito pouco ouvidos sobre as dificuldades que enfrentamos na sociedade como sobreviventes”.

A Lei do Direito ao Esquecimento, que entrou em vigor no início deste ano, tentou mitigar algumas destas dificuldades, já que visa acabar com a discriminação das pessoas que passaram por situações clínicas, como uma doença oncológica, no acesso, por exemplo, a créditos bancários ou na realização de seguros de saúde ou de vida. No entanto, ainda não está a ser aplicada de forma generalizada a todos que dela podem beneficiar e coisas tão simples como fazer um crédito bancário para compra de habitação pode ser um tormento para um sobrevivente de cancro.

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“De facto, os desafios psicossociais vão estar presentes e podem fazer-se acompanhar das sequelas físicas, nuns casos mais do que outros, dependendo do tipo de doença e dos tratamentos recebidos”, assegura a psicóloga, lembrando o exemplo do leque: durante determinado tempo esteve fechado, com o foco no tratamento e na sobrevivência. Ultrapassado o momento de doença aguda, volta a abrir para a vida em sociedade, mas é nesse momento que surgem “novas exigências práticas do quotidiano que é preciso ajudar a ultrapassar”. 

Nessa altura, para além das questões práticas, podem surgir inseguranças, medos, revolta. Maria de Jesus Moura diz ser necessário “um grande respeito pelo tempo de cada um, porque todos somos iguais enquanto Humanidade, mas cada um de nós precisa do seu tempo para integrar estas experiências mais difíceis e complexas”.

Júlia Rodrigues está a respeitar o seu tempo, embrenhada nos seus projetos académicos e pessoais, a mimar a cadela, a namorar e a aprender a conviver com o medo: “Sim, tenho os meus medos [que a doença volte], mas, hoje em dia, tento não os esconder. É necessário ter respeito para com os nossos medos, mas a verdade é que aprendi que não tenho controlo sobre coisas deste calibre.”

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16 Out 2022 - 10:38

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